São Paulo, quarta-feira, 10 de janeiro de 1996
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Fassbinder filma horror do casamento

ALCINO LEITE NETO
EDITOR DO MAIS!

O diretor alemão Rainer Werner Fassbinder viveu 37 anos (1945-1982). Escreveu 13 peças de teatro, foi ator em 36 filmes e dirigiu outros 43 para o cinema e para a TV, entre eles "Martha", que é lançado agora em vídeo no Brasil.
Ator, foi apenas correto. Dramaturgo, deixou uma obra incompleta. Cineasta, é o maior da Alemanha desde Fritz Lang e talvez o mais importante da Europa desde Bergman e Godard.
"Martha" foi filmado em 16mm para a TV, em 1973, e mais tarde lançado nos cinemas. No mesmo ano, Fassbinder realizara "Nora Helmer", baseado na peça "Casa de Bonecas", de Ibsen. Um pouco depois, em 1974, faria "Effi Briest", inspirado no romance homônimo de Theodore Fontane.
Os três filmes dialogam entre si. São, antes de mais nada, três retratos de mulheres às voltas com os dramas (ou melodramas) do casamento. Mas o que é o casamento para Fassbinder? É a cena privilegiada de um jogo de forças, o lugar principal de confronto dos papéis sexuais -e do sentido político deste confronto.
Fassbinder, que nasceu no ano do fim da 2ª Guerra, fez de sua obra uma sistemática reflexão sobre o conteúdo político latente das relações cotidianas, dos atos pequenos do dia-a-dia. Para ele, as questões são estas: Como se distribui o poder? Por que um quer dominar? Por que o outro se deixa dominar? Por que não se consegue nunca ser feliz?
Não seria uma preocupação original, se ele não a materializasse de maneira tão perversa.
Quando Fassbinder descobriu, em 1971, os filmes do alemão Douglas Sirk (1900-1987), achou ao mesmo tempo uma nova chave para seu cinema.
Sirk, considerado um dos mestres do melodrama hollywoodiano, ensinou a Fassbinder a maneira exatamente cinematográfica de lidar com as várias camadas dos sentimentos, os modos de colocar na tela as suas ambiguidades, os seus subentendidos.
Depois do encontro com Sirk, Fassbinder abandonará os restos da estética underground e nouvelle-vaguiana, e seus filmes serão amadurecidos na forma de uma dramaturgia superior e incisiva, de assumido maneirismo.
A chave dessa dramaturgia consiste em expor o reverso das atitudes, em tirar a máscara da falsa (ou da boa) consciência, revelando os mecanismos que levam um personagem à tirania ou à submissão.
Em Sirk, os elementos em conflito agitam-se em torno das razões do coração e desembocam frequentemente numa tragédia espiritual.
No cinema materialista, pessimista e pós-freudiano de Fassbinder, as relações (amorosas ou não) são campos minados de uma guerra superior que está sendo travada na sociedade e que diz respeito ao modo como esta sociedade se organiza em classes, como ela faz tudo passar pelo sistema do dinheiro, como ela distribui os papéis sociais e sexuais, como ela aterroriza os diferentes e como ela cativa os sujeitos, fantasiando seus recalques e explorando sua falta.
Para Fassbinder, a aspiração ao amor, à felicidade, à prosperidade, ao gozo, a um momento de sossego que seja não pode ser dissociada do mecanismo geral que os sentimentos acabam por mimetizar: o mecanismo do capital.
O teatralismo do cinema de Fassbinder visa justamente enfatizar a artificialidade daquilo que se manifesta e trazer à tona o que está recalcado num olhar, numa palavra ou num gesto.
Tal desvelamento com frequência guarda surpresas -e eis a perversão de Fassbinder. Onde supúnhamos o tirano, pode estar a vítima. Detrás da vítima, o opressor.
Tudo isso porque não são apenas as categorias subjetivas que governam a cena. Os atores representam personagens, mas estes "encarnam" forças sociais, sempre opressivas, num intrincado jogo de papéis que só o desespero, a loucura ou a morte pode romper.
E não é de outra coisa que fala este filme esplêndido que é "Martha", de rara economia narrativa e com uma das câmeras mais sublimes do cinema de Fassbinder.
Trata-se de uma história de casamento apoiada na tradição dos filmes de vampiros. Martha deseja sofrer nas garras de seu marido. Por que sofrer e não apenas gozar? Porque, para ela, o gozo é um filme de terror e fantasmas, e, para Fassbinder, "Martha" é um retrato do sistema de culpa e autopunição a que está destinado o desejo feminino nesta sociedade.

Vídeo: Martha
Diretor: Rainer Werner Fassbinder
Elenco: Margit Carstensen, Karlheinz Böhm, Ingrid Caven
Distribuição: Alpha Filmes (tel. 011/230-0200)

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