São Paulo, quarta-feira, 10 de janeiro de 1996
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Uma alternativa para o Sivam

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Comprovada a inidoneidade da empresa brasileira Esca e seu conluio com a americana Raytheon, o perigo é que essa cabala venha a ser assumida como bode expiatório e que o verdadeiro culpado não apenas permaneça ileso, mas, pior ainda, acabe por triunfar.
Pois é isso que a negociata que percorre os bastidores do Senado propõe. Manter o mesmo projeto, embora submetido a uma licitação internacional que dará, talvez, uma satisfação à opinião pública, limpará a barra do Congresso e permitirá ao presidente da República manter seu pleito de submissão e permitir ao Ministério da Aeronáutica continuar seu projeto de sobrevivência. Mas tudo continuará na mesma.
Se uma das empresas americanas vencer a concorrência, o financiador será o Eximbank americano com as mesmas exigências, ou seja, absoluta exclusão da indústria e da engenharia nacional, com a exceção da Esca ou sua sucessora, como está explícito no atual contrato com a Raytheon. E provavelmente outras empresas americanas, reconhecendo a participação da Raytheon na elaboração do projeto, se absterão.
Em meados de 93, muito antes de ser lançado o processo de seleção, a Raytheon convidou nove parlamentares brasileiros e expôs detalhes do projeto, antes mesmo que o Sindicato Nacional das Empresas de Engenharia do Brasil fosse alertado formalmente da existência do projeto, o que ocorreu em 16/6/93. Seguiu-se a essa comunicação a "escolha" da Esca (em meados de 94). Ninguém duvida hoje que a concepção básica do projeto Sivam seja em parte da própria Raytheon. É preciso, portanto, substituir não somente esse projeto, mas também os conceitos fundamentais que o lastrearam.
O Sivam contém quatro subsistemas básicos que vamos assumir que correspondam a quatro necessidades (para simplificar a discussão).
A primeira delas, a mais óbvia, é o auxílio e proteção ao vôo. O major-brigadeiro Aldo Vieira da Rosa, mais crítico que qualquer outro, contesta a existência de qualquer necessidade nesse setor. Para ele bastaria a adoção de um GPS em cada aeronave, cujos custos para o proprietário do avião seriam de US$ 200 apenas. Eu seria um pouco mais generoso.
Em aeroportos operando com baixa visibilidade e à noite, informações colhidas por operadores independentes (por vezes o próprio piloto), equipamentos não-controlados, convergindo para uma central de operações que redistribui instruções, não são confiáveis.
É absolutamente necessário, nesse caso, uma torre com radares próprios. Um sistema desses já existe em Belém. Para pequenos aviões que pousam em pequenos aeroportos seriam necessários conjuntos VOR que, associados aos atuais GPS, proporcionariam nível de segurança aceitável. A esse complexo seriam adicionados progressivamente radares meteorológicos, que coletam informações em tempo real sobre precipitações.
Tudo isso não custará mais que US$ 30 milhões ou US$ 50 milhões, dependendo da implantação de mais um ou dois conjuntos de radares primários, secundários e periféricos. Contrariamente à interpretação de Vieira da Rosa, não seria preciso criar uma indústria brasileira de radares. Ela já existe. O Brasil já produz e até exporta para cinco países, inclusive os EUA, equipamento VOR, radares secundários e meteorológicos. Somente não vende, até hoje, radares primários.
O segundo e o terceiro subsistemas se referem à vigilância do espaço aéreo e terrestre de caráter militar e policial, respectivamente. O equipamento proposto pela Raytheon/Esca é insatisfatório, como confessam alguns dos representantes do próprio Ministério da Aeronáutica. Consiste em uma extensão do conjunto de radares de terra, fixos, além de outros móveis, radares 3D sobre veículo e aerotransportados de varredura lateral. É essa parafernália obsoleta que encarece tanto o Sivam.
O sistema é ineficiente para funções policiais porque não detecta aviões que voam baixo. Militarmente é também incapaz, pois só detecta aviões ou outros objetos voadores tarde demais, quando já estão sobre o território nacional.
Recentemente fomos surpreendidos pela informação, oferecida por representantes da Aeronáutica, de que em outubro 817 vôos clandestinos tinham sido detectados sobre a Amazônia, 400 dos quais a baixas altitudes. Ora, se não temos sistema de vigilância próprio, como é que pode a Aeronáutica descobrir esse fato e afirmar tal número com tanta segurança? A única explicação possível é que obtiveram a informação com os EUA a partir do sistema OTH ("over the horizon") instalado em Porto Rico.
Esse sistema tem capacidade de vigilância sobre a Venezuela, a Colômbia, o Equador, o norte do Peru e 3/4 da Amazônia brasileira. Um único sistema desses, centrado em Brasília, permitiria vigiar toda a Amazônia e os países vizinhos e o sul do Caribe. Mas essa tecnologia foi sonegada ao Brasil pelos mesmos supostos aliados, os EUA. E os valorosos dirigentes da nação se submeteram docilmente e aceitaram a imposição de tecnologia obsoleta, abandonada no próprio território americano.
A Austrália, preocupada com a agressiva e populosa Indonésia ao norte, desenvolveu com auxílio da Marconi Inglesa um sistema OTH que opera tanto por reflexão ionosférica quanto por aderência à superfície do mar. Não precisamos de sistema tão sofisticado. Seria possível desenvolver um OTH brasileiro com pouco mais de R$ 500 mil.
O Sivam também conteria um sistema de "guerra eletrônica". Ou seja, eletrônica que permite perturbar comunicações ilegais ou inimigas e proteger as próprias. Esse ponto tem sido omitido das discussões correntes. Essa tecnologia não tem segredos e pode ser desenvolvida no Brasil.
Podemos concluir que o atual projeto Sivam deve ser mudado em seu conceito básico. E se isso acontecer poderá ser implantado em sistema mais eficiente, mais barato e apenas com parte das parcelas que seriam despendidas para pagar o empréstimo agora em discussão. E como benefício adicional viria a posse de uma tecnologia avançada e o apoio à indústria e à engenharia nacional.

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