São Paulo, quarta-feira, 10 de janeiro de 1996
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Todos inocentes

CLÓVIS ROSSI

SÃO PAULO - O Ministério da Aeronáutica acaba de produzir a pérola do pensamento imperial ou talvez teológico.
Ao analisar a imperdoável promiscuidade entre oficiais da Aeronáutica e uma empresa privada (a Esca), o Ministério diz o seguinte:
"Penderia (a lealdade) sempre favoravelmente ao país todas as vezes que estivessem em confronto o patrocínio de uma firma prestadora de serviços -ainda que através dela recebessem seus pagamentos- e os mais elevados interesses nacionais".
Maravilha. Ficamos todos informados de que um funcionário do governo pode ter duplo emprego, mesmo que o segundo emprego seja em uma empresa que presta serviços ao primeiro empregador (o governo), porque sua lealdade simplesmente não pode ser posta em questão.
Ele sempre vai preferir "os elevados interesses nacionais" aos seus interesses pecuniários, decreta a Aeronáutica, como os reis de antigamente ou os papas.
Equivale a vestir asinhas em todo oficial e ainda por cima querer que todos acreditem que seja assim só porque assim o diz a Força Aérea.
É até possível que os militares tenham, desde sempre, se envolvido menos em maracutaias do que seus pares civis. Mas daí até essa indulgência plenária só porque o cidadão veste uma farda vai uma distância inaceitável.
Por essa lógica, ninguém mais pode ser julgado por coisa alguma, desde que seus pares jurem que os "elevados interesses nacionais" serão, sempre, a primeira lealdade de seus companheiros.
Médicos vão jurar que médicos não matam pacientes por engano, advogados vão negar que haja bacharéis capazes das piores façanhas, jornalistas vão dizer que seus companheiros jamais mentem, bispos vão garantir a absoluta inocência de padres, ainda que apanhados em flagrante -e assim por diante.
Só faltava o Collor ter dito que o PC Farias fez tudo o que fez por lealdade aos "elevados interesses nacionais" e a CPI do Collorgate ter arquivado o caso com base nessa garantia. Afinal, por que duvidar da palavra de um presidente?
Que a Aeronáutica queira defender o Sivam, a Esca e seus oficiais, é um direito dela. Mas achar que todo mundo é tonto passa de todos os limites.

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