São Paulo, sábado, 20 de janeiro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Leigo: o juiz ou o legislador?

HORÁCIO WANDERLEI RODRIGUES

A Constituição Federal, ao tratar dos juizados especiais (art. 98, I), estabelece que eles poderão ser "providos por juízes togados, ou togados e leigos". A recente lei nº 9.099/95, ao regulamentar esse dispositivo, define (art. 7º) que "os juízes leigos são auxiliares da Justiça, recrutados (...) entre advogados com mais de cinco anos de experiência".
Segundo o "Vocabulário Jurídico de De Plácido e Silva", juiz togado é "o juiz que é formado em direito, em distinção ao juiz leigo" (1978:888); "diz-se de direito, em oposição ao de fato, atribuído ao leigo, que se coloca, em certos casos, como julgador" (1978:885). De acordo com o "Dicionário da Academia Brasileira de Letras Jurídicas", leigo é "o indivíduo que não possui conhecimento sobre determinado assunto técnico, científico ou literário, quer por diversidade de formação, quer por deficiência de instrução" (1990:331). Segundo o "Aurélio", leigo é aquele "que é estranho ou alheio a um assunto; desconhecedor" (1995:389).
Embora alguns autores destaquem que o papel destinado aos juízes leigos na lei nº 9.099/95 é o de juiz instrutor, motivo pelo qual se justificariam as exigências de formação jurídica e de experiência advocatícia, não há como negar a completa impropriedade da terminologia empregada. Mais do que isso, da inconstitucionalidade do referido dispositivo. Advogado experiente não é leigo em direito. Ao regulamentar o texto constitucional, não pode o legislador ordinário atribuir às expressões da lei maior sentidos aleatórios e inexistentes na língua pátria. Desejando criar a figura do juiz instrutor, devê-lo-ia fazer utilizando-se da terminologia própria, e não adulterando o sentido da expressão constitucional, inclusive porque o legislador constituinte não impôs a presença dos juízes leigos nos juizados especiais. Apenas previu essa possibilidade, como fica demonstrado pela utilização da conjunção alternativa "ou" no artigo 98, inciso I.
Inaceitável, frente a isso, o desvirtuamento do objeto do texto constitucional: permitir, a exemplo do Tribunal do Júri, a participação de pessoas do povo, sem formação técnica, na composição dos juizados especiais. Comprovam esse escopo dois elementos nele contidos: a) a necessidade da existência de juiz togado, evitando a possibilidade de um juizado formado apenas por leigos -ou seja, o leigo é um auxiliar, não a figura principal; e b) a competência dos juizados especiais para "a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo". A atribuição dessa competência, em especial a cível, reforça a idéia da participação de leigos. Fossem elas complexas e impossibilitada estaria a participação de pessoas sem a adequada formação técnica.
Sabe-se hoje, frente às novas teorias linguísticas e hermenêuticas, que não existe a univocidade significativa das palavras da lei. Isso não permite, no entanto, o desrespeito, em textos legais, do seu significado de base. Aceitar a atribuição aleatória de novos sentidos a expressões com significado histórico ou técnico consagrado, como a palavra "leigo", põe em risco um dos mais altos valores da democracia: a segurança jurídica.
Frente a essas questões, fica a indagação: será leigo o juiz designado na forma da lei nº 9.099/95, ou o legislador ordinário que regulamentou o preceito constitucional? Ou, quem sabe, os processualistas que buscam agora justificar o injustificável: passou-se por cima da língua portuguesa e da Constituição Federal.

Texto Anterior: Dispensa sem razão não é abuso
Próximo Texto: Proibir livros é abrir caminho para a ditadura
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.