São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 1996
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Canelada na língua

JOSUÉ MACHADO

O narrador de futebol de TV diz do jogador que acabou de chutar com o pé esquerdo:
"Rivaldo bate na perna esquerda e a bola vai longe do gol!"
Se a bola foi fora é porque o Rivaldo bateu "na" perna em vez de chutar a redonda com o pé, como deveria ter feito.
O mesmo locutor e outros dizem que o jogador tal chuta com a perna direita ou com a perna esquerda.
Primeiro, bater "na" perna esquerda é dar chicotadas ou taponas nela para que se comporte. Quem sabe um chute com o outro pé. Enfim, bater "na" perna é dar um cacete nela com qualquer instrumento, mãos e pé inclusive.
Depois, chutar "com" a perna ou com a canela é um risco para a beleza do espetáculo. Quando não erra, o jogador chuta com o pé, que foi feito para chutar bolas, tomar ônibus e até andar por aí. Quando se bate na bola com a canela é quase certo que ela espirrará torta e sobrará para o adversário, se não sair do campo maltratada.
Se o locutor ilustrado diz que o "Animal" chutou com a perna, poderá dizer também que cabeceou com o pescoço, porque impulsionou a cabeça com os músculos do pescoço.
Bobagem falar em metonímia, a figura de palavra ou tropo com que se substitui um nome por outro a ele relacionado; a causa pelo efeito, o continente pelo conteúdo etc. Na descrição realista de um jogo, pé é pé, perna é perna, cabeça é cabeça e bunda é bunda.
Metonímia ("ele é bom de copo", que é igual a "ele toma todas") é recurso para ser usado no momento e no lugar certos; metonímia não se confunde com confusão mental nem com desinformação nem com lugar-comum, diria irritada a Madre Superiora.
Futebol à parte, mas ainda no capítulo das preposições, lê-se por aí em anúncios que "você pode pagar à vista ou no cartão de crédito". Pagar "no" cartão de crédito? Isso significa o seguinte: trepa-se (no bom sentido), monta-se, "no" cartão de crédito com a ponta de um dos pés e alguma dificuldade, porque ele é pequeno, e faz-se o pagamento da conta com cheque ou dinheiro.
Não se sabe por que andam trocando a preposição "com" por "em" (em+o=no). Deve ser um caso de perversão linguística que poderá ser punido com a leitura dos estatutos do pefelê ou do pemedebê. A escolha é sua.
Políticos e embalagens
Um bom articulista escreveu: "...um mundo onde tudo é igual debaixo das embalagens as mais diferentes, onde nada muda sob a aparência de mudança fervilhante."
Por que "... das embalagens as mais..."?
A repetição do artigo com o superlativo -"o mais", "os mais"- é um velho galicismo sintático. Por que dois artigos com "embalagens"? "... (d) 'as' embalagens 'as' mais..."
Teria ficado mais brilhante a análise, se o computador francês tivesse escrito apenas "... debaixo das embalagens mais diferentes..." ou "... debaixo das mais diferentes embalagens...".
Não se pode falar em boa língua brasileiro-portuguesa que "A Folha tem 'as' mulheres 'as' mais bonitas do jornalismo brasileiro" ou que "Aquele editor usa 'as' gravatas 'as' mais belas do país".
Deve-se dizer que "A Folha tem as mulheres mais bonitas do jornalismo brasileiro" e que "aquele editor usa as mais belas gravatas e roupas do mundo".
Outro exemplo de como não usar o superlativo relativo:
"Os políticos 'os' mais honestos do mundo são produzidos no Brasil."
Deve-se dizer essa estimulante verdade fazendo o expurgo:
"Os políticos mais honestos do mundo são produzidos na Pátria Amada."

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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