São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 1996
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A terceira herança

JORGE PINHEIRO

Aparentemente estamos distantes dos acontecimentos do Oriente Médio. Mas só na aparência. Agora mesmo a colônia árabe acompanha, em compasso de espera, o que pode acontecer com a brasileira Lamia Hassan, presa em Israel por ter participado de sequestro que resultou na morte de um soldado israelense nos territórios ocupados.
Para quem olha a situação no Oriente Médio, hoje, pode parecer que há um ódio estrutural entre árabes e judeus. E que os primeiros são os vilões da história ocidental. Mas isso não é verdade. Tinha razão Roger Garaudy, ex-marxista e filósofo francês, ao dizer que o Ocidente é um acidente, por ter construído uma cultura mutilada, em cima de uma dupla herança, greco-romana e judaica-cristã.
Esse Ocidente acidental sempre negou suas origens orientais, quer em relação ao helenismo, quer em relação à tradição judaica-cristã. Mas o absurdo maior se deu em relação ao islamismo. Se o Ocidente tem uma característica, é a de ser a civilização do monoteísmo. E é impossível entender o monoteísmo deixando de lado a herança e a cultura muçulmanas.
Nem sempre foi assim. Expoentes do pensamento cristão, como Joachin de Flore e São Francisco de Assis, entre outros, foram a fundo na busca de uma linguagem comum. Mas a grande experiência da realização de uma civilização ocidental plena deu-se na Espanha muçulmana. Ali, os três variantes do monoteísmo desenvolveram-se com liberdade, lado a lado, durante séculos.
Ao contrário do que prega o mundo ocidental, uma das bases do pensamento de Maomé é a igualdade entre os homens. Há, por exemplo, um respeito profundo pelas origens do pensamento religioso judaico em todo o Corão. "Sigam a religião de Abraão, um verdadeiro homem de fé" (Corão, Surata 2, versículo 135). Antes de morrer, em março de 632, na Peregrinação do Adeus, Maomé insistiu nessa igualdade diante de Alá, sem discriminação de raça, riqueza ou sangue.
Na verdade, nós ocidentais, cristãos por crença ou indiferença, somos responsáveis por atos de violência como as Cruzadas e a Inquisição, para citar apenas aqueles historicamente mais distantes, cometidos contra judeus e contra o mundo muçulmano. Por isso, se tivermos o equilíbrio e o distanciamento que o momento exige, judeus e muçulmanos, quer no Oriente Médio, quer na diáspora, criarão as bases necessárias ao entendimento.
Afinal, há 1.300 anos afirmava Maomé: "Dizei: cremos em Deus, no que nos foi revelado, no que foi revelado a Abraão, a Ismael, a Isaque, a Jacó e às 12 tribos, no que foi dado a Moisés e a Jesus, no que foi dado aos profetas, por parte do Senhor. Não temos preferência por nenhum deles" (Corão II: 136).
Diferenças religiosas à parte, é impossível negar a herança comum que nos une.

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