São Paulo, segunda-feira, 22 de janeiro de 1996
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Hubble revela a imensidão do universo

FERNANDO GABEIRA
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Até a semana passada pensávamos que existiam apenas 10 bilhões de galáxias. O telescópio Hubble revelou que existem 50 bilhões. E daí?
Bem, é difícil estabelecer uma conexão entre essa descoberta e a vida de cada um. Mas poderíamos aproveitar o Hubble para repetir aquelas frases falsamente atribuídas ao escritor Jorge Luis Borges. Se soubesse que existem 50 bilhões de galáxias, teria cometido mais erros, teria andado mais descalço, teria passeado na chuva...
O fato de sabermos que existem 50 bilhões de galáxias deveria nos envergonhar de certas brigas municipais e dá ao movimento dos sem-terra, por exemplo, a dimensão de uma tragédia cósmica.
Mas se eu soubesse antes que são 50 bilhões as galáxias do universo, seria menos sério, perderia mais canetas, compraria mais livros, aprenderia a mergulhar e passaria mais tempo no fundo do mar de Angra.
Se há 50 bilhões de galáxias por que pensar tanto em comprar uma casa, por que ler tantas notícias políticas, no momento em que um tigre chamado Nicolai começa sua dieta alimentar em Minas?
Quando um grupo de mergulhadores saiu de uma experiência de vários dias no fundo do oceano, a impressão foi a mesma dos que chegaram à lua: grande parte da preocupação humana é ridícula diante da grandeza cósmica.
Entre os mergulhadores e cosmonautas há uma espécie de pacto de graça simetricamente oposto ao desencanto dos correspondentes internacionais. Um dia, na Alemanha, encontrei um dos mais experientes jornalistas e ele acabara de lançar um livro sobre a guerra do futebol, na América Central. E pensamos juntos: Como se veria uma guerra dessas da lua? Ou uma guerra de torcedores como aquela que os ingleses fizeram na Bélgica?
Aliás, se soubesse que existem 50 bilhões de galáxias, teria ficado menos tempo em Bruxelas e morado uns meses numa "house boat" a preço de banana no Kashmir, teria me preocupado menos com os vizinhos.
Nem pensar nos amores perdidos, nas brigas inúteis, rancores, renúncias, precoces separações. O Hubble me alcança na segunda metade da vida com uma terrível indagação: se o universo é tão grande, por que a alma é tão pequena?
Talvez um congresso de poetas pudesse tratar melhor esse problema. Mas quem se interessa hoje por poetas ou dietas de tigres? Eles foram empurrados para a margem, são conspiradores que se reúnem na penumbra, sussurrando loucuras: a besta se chamava Suzana, come chocolate pequena, os cavalos da aurora derrubando pianos avançam furiosamente pelas portas de noite. Da minha pequena cidade agonizando à beira de um rio moribundo, talvez tenha sobrado isso, Hubble, uma pequena explicação de Murilo:
"Ninguém sonha duas vezes o mesmo sonho
Ninguém se banha duas vezes no mesmo rio
Nem ama duas vezes a mesma mulher
Deus de onde tudo deriva
E a circulação e o movimento infinito
Ainda não estamos habituados com o mundo
Nascer é muito comprido"
Cada vez que começa uma semana, como hoje, já não temos mais o que esconder: a terra é azul e há 50 bilhões de galáxias. É pegar ou largar.
A imensidão do universo, posso quem sabe alcançá-la com o verso do meu lugar:
"...Conto as estrelas pelos dedos
Faltam várias ao trabalho"
Ou então:
"Há estrelas brancas, azuis, verdes, vermelhas
Há estrelas peixes, estrelas pianos, estrelas meninas
Estrelas voadoras, estrelas flores, estrelas sabiás
Há estrelas que vêem, que ouvem,
Outras surdas e outras cegas.
Há muito mais estrelas que máquinas, burgueses e operários
Quase que só há estrelas"
(Versos de Murilo Mendes, do livro "Melhores Poemas", Global Editora.)

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