São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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De como o poeta ameaçou os militares de 64

JAMES AMADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Gregório de Matos deixou a cidade da Bahia em 1694. Não por sua vontade, nem lhe foi dado escolher transporte ou data de sua conveniência. Degredado, foi tirado da prisão para um barco que levava cavalos a Benguela e de lá retornaria com uma carga de escravos.
Em Angola, o poeta envolveu-se numa rebelião da tropa. Sustado o movimento, Gregório conheceu outra viagem forçada de volta ao Brasil, não para a Bahia, onde o governador não lhe desejava a presença, mas para Pernambuco.
Quando desembarcou no Recife, o governador da província, "lastimado de ver o miserável estado a que chegara um homem tão mimoso da natureza", lhe fez donativo de uma bolsa bem provida. Com palavras um pouco severas, determinou que, naquela capitania, Matos cuidasse muito em "cortar os bicos à pena", segundo conta seu primeiro biógrafo, o licenciado Manoel Pereira Rabelo.
Foi curta a duração deste novo degredo -em seu próprio país e proibido de fazer sátiras. Gregório morreu no Recife e foi enterrado, indigente, no hospício de Nossa Senhora da Penha dos Capuchinhos Franceses, no dia em que chegava à cidade a notícia da liquidação do Quilombo dos Palmares.
O retorno de Gregório de Matos à Bahia deu-se no dia 2 de janeiro de 1969. Desembarcou de um caminhão diretamente no departamento de cultura e agradeceu as boas vindas do escritor e professor Luís Henrique Dias Tavares, diretor daquele órgão estadual para os assuntos culturais.
O poeta estava de roupa nova. Os sete volumes de sua obra poética, pela primeira vez completa e reunida sem qualquer censura, como lhe apetecia. Mil coleções haviam sido compradas pelo governo baiano para distribuição, sinal de que, finalmente, as relações do poeta com o poder se aplainavam.
É impossível riscar da memória aquela manhã do verão de 1969. O telefone me traz a voz do governador de Estado, o acadêmico Luís Viana Filho, em uma convocação imperiosa: "Preciso falar com você agora. Meu motorista vai apanhá-lo. Por favor, é urgente".
Recebeu-me no gabinete do palácio residencial. Homem de trato cortês e lhano, mas político habituado a não revelar suas emoções, naquele dia Luís Viana Filho estava visivelmente agitado. Estendeu-me uma folha de papel com o timbre das Forças Armadas e um ostensivo carimbo: "confidencial". E se pôs a andar num passo brusco, de um lado a outro, entre a mesa de despachos e a poltrona por mim ocupada, enquanto eu lia o documento surpreendente.
Nele, o general comandante da região militar interpelava rispidamente o governador e exigia dele que lhe apresentasse, "por escrito e no prazo de 24 horas, as razões que o tinham levado a apoiar uma edição tão subversiva como a das obras de Gregório de Matos".
O chefe militar da região provocava cruamente o governador, ao fingir desconhecer que este, embora civil e escritor, havia sido nomeado para o cargo pelo marechal-presidente da República militar e tivera seu nome sancionado pela dócil Assembléia Legislativa.
"E agora?", perguntei-lhe. "Não vou responder, é claro". A voz traía sua indignação. "Tome nota do que digo: na próxima semana, um general meu amigo assumirá o comando militar no Planalto. Passarei de caça a caçador".
Guardei suas palavras e o teor do ofício confidencial. O que Luís Viana Filho prenunciara aconteceu sem demora. Passou de caça a caçador. Antes, um troço de soldados armados invadiu o departamento de cultura, sequestrou e incinerou as coleções da obra de Gregório de Matos. O diretor do órgão foi preso. Duzentos e setenta e cinco anos após sua morte no Recife, Gregório de Matos retornava à Bahia. E bem à sua maneira: perturbando a paz dos poderosos.
Veio para ficar.

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