São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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As ilusões esfaceladas

LUIS S. KRAUSZ
ESPECIAL PARA A FOLHA

Desde Proust e Freud, a cultura do Ocidente vive a certeza de que o presente encontra-se impregnado do passado, por meio de evocações, associações e alusões indiretas, e que estas se colocam entre o homem e a realidade, cercando-o e, sobretudo, impedindo que ele prove do fruto paradisíaco e proibido da árvore da vida.
Os múltiplos personagens que desfilam -justamente ao sabor de associações e evocações- pelo único e longo parágrafo do romance "Passado Contínuo", do israelense Yaakov Shabtai, demonstram, "ad nauseam", a atualidade desta tese. Com o subtítulo "A Lembrança das Coisas", sua narrativa está entre o que de mais moderno existe em literatura israelense, ainda que os métodos empregados por Proust e Freud sejam claros tributários dessa aparentemente infindável descrição de pessoas, relações, famílias, histórias.
Desfilam, como num sonho febril e repetitivo, dúzias de criaturas apenas tenuemente interligadas, alguns contornos e fragmentos de existências coladas a passados opressivos. De rincões distantes no interior da Europa, de metrópoles alemãs e americanas, da Polônia ou do nazismo, da guerra de independência de Israel ou mesmo de um passado bem recente, as lembranças dos mais diversos indivíduos determinam suas existências e vão compondo um gigantesco mosaico, cujos detalhes, esparsamente traçados, retratam aspectos incômodos das relações entre membros de diversas famílias e seus laços.
Os três pontos focais da narrativa de Shabtai, aos quais ele retorna sempre, são os personagens Goldman, César e Israel. Em torno desses três homens, ele traça séries de círculos concêntricos, que acabam por mergulhar o leitor naquilo que transcende a individualidade, torna-se geral, aplicável a todos, como os transportes coletivos. O fulcro da narrativa romântica, assim, desloca-se do personagem para a nação inteira, e daí para a espécie como um todo.
As dúzias de homens e mulheres, apenas mencionados, tentam, cada qual à sua maneira, livrar-se dos presídios de seus passados particulares, que enevoam sua vivência do presente. Para tanto, há os que buscam a religião e há os que buscam o prazer do refinamento estético. Há os que perseguem a comida, o álcool, o sexo ou o tabagismo, e há os que se recusam a assumir qualquer espécie de compromisso.
Mas as frases incisivas de Shabtai vão martelando nossos ouvidos e aos poucos esfacelando suas ilusões. Soluções existenciais, este ou aquele conjunto de parâmetros estéticos ou morais, nada oferece ao homem consolo -se não resposta- diante do infindável enigma da modernidade. Simplesmente parece não haver saída.
Além de testemunho das ânsias de uma geração, a obra é um experimento perturbador, de enorme inventividade, que justifica a aclamação que Shabtai vem recebendo, tanto em Israel quanto no mundo de língua inglesa. Chega ao leitor brasileiro em tradução precisa, diretamente do hebraico.

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