São Paulo, domingo, 20 de outubro de 1996
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Um psicanalista enfrenta a Aids

GILBERTO DIMENSTEIN
DE NOVA YORK

Em janeiro deste ano, o psicanalista James Cassese, 32, notou manchas subindo pelo rosto e jurou que cometeria suicídio se a Aids deformasse seu corpo.
A idéia de suicídio era inspirada por um de seus pacientes um bailarino chamado Artur, famoso no mundo da dança em Nova York. O corpo foi tomado pelas mesmas manchas do sarcoma de Kaposi, câncer de pele associado ao vírus HIV, desfigurando suas linhas esculturais, acompanhadas pelos holofotes.
Desesperado, Artur fugiu do hospital e, de noite, realizou performance no teatro. O esforço foi fatal, ele morreria dois dias depois, em 1993. "Desse jeito não acabo", disse James a si mesmo.
Um ano antes, James recebeu a notícia de que tinha no sangue o vírus da Aids. A doença era a consequência de sua imersão no Village, bairro boêmio de Nova York, nos anos 80, onde se testavam todos os limites do sexo e drogas.
Ao saber da doença, ele se comprometeu a viver com dignidade, não deixaria a doença degenerar sua aparência. Aderiu à ioga, ervas, alimentação saudável, sexo seguro, acupuntura, mergulhou nos estudos sobre imunologia. Caso nada disso funcionasse, consolava-se com uma idéia do suicídio. "Era o fim mais nobre", decidiu.
O câncer se insinuou em julho de 1995, mas só viria, de fato, a aparecer no começo deste ano, trazendo as lembranças da última dança do paciente bailarino.
Os portadores do vírus em Nova York já tinham à disposição, porém, um coquetel de novos remédios, chamados inibidores protease. Tiraram o vírus do sangue de James e foram-se também as manchas -mas inauguraram um suplício.
"Quando o vírus estava visível, eu me sentia saudável, disposto. Agora, os remédios produzem terríveis efeitos colaterais", diz ele.
Os remédios provocaram diarréias -num único dia, 20 vezes- vômitos e, pior, a pele queimava. "Era como se alguém lhe desse um tapa depois que você estivesse queimado pelo sol", afirma.
"As pessoas ainda não sabem como é duro viver com o efeito desses remédios", comenta James. Ele é obrigado a tomar 13 doses por dia e, se desrespeitar o rígido cronograma, o vírus volta ainda mais forte.
Professor da Universidade de Nova York, James Cassese é um dos raros psicanalistas da cidade a admitir publicamente que tem Aids. Concluiu texto, semana passada, a ser divulgado em livro ainda este ano, defendendo a idéia de que vale a pena revelar a doença aos pacientes.
Intitulado "Caring for the Caregiver" -grosseiramente traduzindo "Cuidando dos que Cuidam", o livro, uma coletânea de artigos, é destinado aos terapeutas que lidam com doentes de Aids.
O texto original circulou e recebeu críticas de alguns psicanalistas. Afinal, contraria os ensinamentos de que o terapeuta deve ser neutro, uma folha em branco, servindo de transparência livre aos pacientes projetarem seus dramas, complexos, pânicos.
"Estou convencido de que a revelação, em muitos casos, ajuda", sustenta James, que já atendeu pelo menos 500 pacientes vítimas de Aids em Nova York, em seu consultório, organizações não-governamentais que dão auxílio aos doentes e no Hospital Saint Vicent, um dos mais importantes centros de tratamento de portadores de HIV em Nova York.
Viu a maioria deles morrerem, chegando aos limites do desespero. Muitos se entregaram às drogas, sexo promíscuo, depressão ou se matavam cortando os pulsos ou dando tiro na cabeça, personagens que mostravam as sombras que encobriam Nova York, cidade de maior conglomeração de homossexuais no mundo.
O debate lançado por James é tenso. Até que ponto a revelação não jogaria o paciente em desespero ainda maior? Ele não precisaria de alguém forte e saudável, uma bóia, em vez de alguém que transmitisse a suspeita de que também estava se afogando?
Os sinais dessa tensão ele colheu num sonho. "Sonhei que tinha assassinado um grupo de pessoas na rua, no estilo 'serial killer'. A polícia saiu atrás de mim por todos os lados e eu ia me escondendo. Enquanto fugia, parava nos telefones, ligava para meus pacientes, perguntando se estavam bem."
James Cassese está convencido de que só entendeu, de fato, seus pacientes, quando ele próprio descobriu que tinha Aids. "Descobri que o medo da morte é secundário. O maior medo é o da vida", afirma.
Medo da vida significa o corpo dilacerado, a dependência total, a sensação de repugnância e marginalidade. "Só entendi isso quando soube que o vírus corria no meu sangue, até lá era um entendimento distante, psicanalítico. Portanto, eu não deveria trabalhar com a morte, discutindo como enfrentá-la. Mas como lidar com a vida", diz James.
O paciente com Aids, segundo ele, não é igual ao paciente com câncer. "A Aids define uma identidade. Câncer pode dar num homem, mulher, velho, criança, heterossexual, qualquer coisa", analisa.
Por causa dessa relação entre doença e identidade, o paciente sente-se marginalizado e incompreendido, suspeita que o terapeuta jamais entenderia suas angústias. "Minha experiência tem demonstrado que, ao dizer que estava com HIV, abri uma nova ponte. Eles viam que, apesar de doente, eu estava lá trabalhando, produzindo, ajudando, e servia como exemplo. Constatei bons resultados", conta.
Em seu artigo que vai fazer parte do livro, ele relata o que vem aprendendo no consultório e as reações dos pacientes diante de suas revelações. Adverte, entretanto, que o terapeuta deve saber quando e como se abrir, o que nem sempre é fácil de descobrir. "Ao abrir o jogo, o terapeuta tem de estar consciente de que demonstra simultaneamente um ato de extrema força e, ao mesmo tempo, extrema vulnerabilidade", escreve no texto.
Seus planos literários vão, entretanto, além dos complexos textos acadêmicos. Nos consultórios, hospitais, casas noturnas, festas e viagens inesquecíveis, ele é testemunha dos labirintos de Nova York onde se misturam morte e prazer.
Ele faz parte da primeira geração de cobaias que, no final do milênio consegue driblar a morte por Aids, graças aos novos remédios criados na própria Nova York; capital do mundo nesse final do século, onde, não por coincidência, os laboratórios produzem os antídotos químicos contra a Aids.
É a geração que, por enquanto, dribla a morte, mas ainda não sabe como sobreviver -talvez comece a aprender no divã de um analista.

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