São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 1996
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Uso de passaportes e dupla nacionalidade

NELSON JOBIM

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo de 6 de setembro de 1996, tive a oportunidade de comentar os efeitos da modificação do texto constitucional, que passou a admitir a dupla nacionalidade para brasileiros natos e naturalizados no estrangeiro.
Uma questão prática, todavia, tem sido ventilada com frequência: a pertinência da utilização de dois passaportes, notadamente em viagens a terceiros países.
O sistema de atribuição de nacionalidade pelo direito de sangue -"jus sanguinis"- é comumente adotado por países com grande fluxo de emigração, com intuito de proteger seus nacionais que vivem no estrangeiro. Já o sistema que privilegia o direito do solo -"jus soli"- é geralmente seguido por países cuja formação populacional foi fortemente influenciada por imigrações. Nesse caso, procura-se outorgar a condição de nacional àqueles ali nascidos, ainda que filhos de estrangeiros.
O direito internacional moderno convive bem com situações de dupla nacionalidade. É perfeitamente aceitável que cada país atribua ao seu nacional os deveres inerentes à cidadania. O brasileiro que possua também uma nacionalidade estrangeira, por exemplo, quando no Brasil, está sujeito aos mesmos deveres exigidos dos demais nacionais. "Mutatis mutandis", também lhe são impostos deveres no país estrangeiro do qual possua a outra nacionalidade.
O inadmissível, porém, é querer o melhor dos dois mundos. Não pode um cidadão com dupla nacionalidade alegar, dentro do território nacional, sua condição de estrangeiro para se eximir do cumprimento de qualquer obrigação ou para amparar-se em direitos conferidos pela legislação estrangeira.
O passaporte é um direito que decorre da cidadania -observado o "jus soli" ou o "jus sanguinis"-, razão por que a utilização de dois passaportes não constitui problema nem irregularidade.
O indivíduo que possua dupla nacionalidade deve, em cada país de que é nacional, utilizar-se do passaporte por ele emitido. Ao entrar em nação estrangeira, a utilização de qualquer deles é aceitável e não fere qualquer preceito constitucional ou legal. A conveniência de usar um ou outro dos passaportes depende, em princípio, das relações entre os países que emitiram esses documentos de viagem.
O conceito de soberania absoluta vem sendo cada vez mais flexibilizado, no intuito de tornar mais adequadas as situações concretas às legislações dos diferentes países, sem ferir a individualidade de cada sistema jurídico.
O ordenamento jurídico de cada nação politicamente organizada necessita, sempre, de adaptações, sobretudo quando se considera que os sistemas políticos e jurídicos não agem isolados, mas sim em harmonia com as disposições legais de outros países.
Atualmente, com o revigoramento da democracia em quase todos os quadrantes do mundo, muitas das decisões tomadas pelos governantes não mais se cingem aos territórios nacionais. Ultrapassam fronteiras e, neste caso específico, ainda acompanham harmonicamente os cidadãos, deixando de gerar conflitos como no passado.
Portanto, a correta utilização de dois passaportes decorre dos preceitos legais aplicáveis e reflete o mero exercício de direito vinculado à dupla nacionalidade.

Nelson A. Jobim, 50, advogado, é ministro da Justiça. Foi deputado federal pelo PMDB do Rio Grande do Sul e relator da revisão constitucional.

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