São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Cenas de um deliberado despojamento

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

"Quando o crematório ficou pronto, a lista de espera era longuíssima, mas Dante possuía a senha número 12. Sorte. A irmã dele veio para a cerimônia. Disse que quase tinha esquecido que ele tinha morrido, pois já fazia tanto tempo... (...) Guardei as cinzas de Dante numa pequena caixinha, enfeitada com imenso laçarote, coloquei em cima da geladeira e nunca mais jantei sozinha."
O sarcasmo exalado pelo trecho acima, extraído do conto "Hóspede", em que a viúva acompanha a cremação do marido, é uma das características do livro "Com as Horas no Bolso", coletânea de 40 contos da jornalista Judite Scholz.
Trata-se de histórias curtas -algumas de apenas meia página-, na maioria das quais a autora penetra no universo de casais os mais díspares, sejam marido e mulher, namorados, amantes, separados, sempre com ênfase nas frustrações e no desgaste que deteriora aos poucos esses diferentes relacionamentos.
Tal perscrutação se dá de maneira muito direta, rasante e "sem anestesia", como indicam, aliás, vários dos títulos de seus relatos, como "Tadeu Pega no Meu", "Mãe é Mãe, Mulher é Tudo Vaca", "Filhos: Melhor Tê-los", "Orgasmo", "Na Orelha, Não", "Os Cachorros Também Amam", "Quer Que Trave?", por aí afora -o que leva o escritor Ignácio de Loyola Brandão a afirmar, na apresentação do livro, que "ela é a nossa Raymond Carver com seus shorts cuts".
Verdade que nem todos os contos de "Com as Horas no Bolso" alcançam essa agudeza. Alguns, como "Preso por Fantasias", uma história meio insossa de gnomos; "Fogos Artificiais", um tanto bobinho ao tratar de um lobisomem; ou "Mercado Paralelo", relato em tom crítico da história de um pastor que explora seus fiéis, padecem de uma ingenuidade quase colegial. Perto dos demais, são como que os "primeiros escritos" da autora.
Outros contos presentes no livro já aliam a essa agudeza um toque intimista e confessional diferenciador, que se acrescenta ao universo exploratório mencionado acima e mostra uma possibilidade de desenvolvimento temático e estilístico interessante, mas pouco explorada, nessa estréia, por Scholz.
É o caso de "A Natureza do Teu Corpo", em primeira pessoa, no qual uma mulher afirma: "Minha pele, já insensível aos borrachudos e ao sol diário, faz com que eu desconheça o meu próprio corpo -desfaço contratos de aluguel, venda ou usufruto e tomo posse dele. Os alfaces de minha horta crescem desprovidos de agrotóxicos e, por isso, envenenam -não te convido para o almoço".
No conjunto, além da ironia e do sarcasmo, marca o texto de Scholz um despojamento deliberado. Seus períodos são elaborados, na maior parte, à base de frases em ordem direta, muitas vezes coloquiais, sem abuso de metáforas. Tal fórmula, se não permite ao leitor saborear esteticamente um estilo mais trabalhado e refinado, ajuda a introduzi-lo, porém, diretamente, na carne viva dos personagens.

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