São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Lições do aparentemente banal

BORIS FAUSTO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Em outubro de 1980, fui à Paraíba para participar de uma série de conferências comemorativas do 50º aniversário da Revolução de 30. Por que falo agora dessa viagem, em vez de contar alguma façanha narcísica realizada em Nova York, em Cambridge ou em Oxford? É que, sem pretender forçar a nota nacionalista e regionalista, aquela viagem aparentemente banal conteve algumas lições de história.
Logo na chegada, as pessoas que me receberam deram uma indicação da presença da Revolução de 30 na Paraíba. Eu teria a grande oportunidade -me disseram- de entrevistar José Américo de Almeida, proeminente figura revolucionária, ministro da Viação e Obras Públicas durante o governo provisório de Getúlio Vargas e, mais tarde, candidato à Presidência da República nas eleições de 1938, suprimidas pelo golpe do Estado Novo.
À noite, fui fazer uma conferência em um auditório lotado, cheio de luzes, os ternos brancos se destacando na platéia. Tentei traçar uma interpretação do episódio revolucionário, e a partir do que já havia pensado e escrito, introduzindo aqui e ali um novo ângulo de abordagem. Não dei muito crédito ao "valor indômito da pequenina Paraíba", nem a acontecimentos em que avultava a morte de João Pessoa. Quando se abriram os debates, entre crítico e elogioso, um senhor se levantou e, ao iniciar uma longa digressão, enfatizou que só mesmo um paulista poderia falar da Revolução de 30 com tanta frieza.
A presença do ícone José Américo, essa observação e outros sinais me fizeram perceber ao vivo uma dimensão histórica que podemos chamar de "temporalidade regional". No centro-sul, depois de ter servido de divisor de águas entre getulistas e antigetulistas, o episódio revolucionário perdera temperatura, convertendo-se em um episódio "frio" de nossa história. Não era assim na Paraíba onde, pelo menos no início da década de 80, a Revolução de 30 integrava, de algum modo, a vida presente. O que era passado longínquo em São Paulo se transformava em presente, ou pelo menos em passado muito próximo, em João Pessoa.
Saí da conferência com um grupo animado e paramos para conversar numa praça tranquila, onde as imensas amendoeiras lançavam, a nossa volta, sombras extensas que a luz da iluminação de mercúrio não conseguia cortar. A conversa girava ainda em torno da história e tinha como pressuposto a noção de que a Revolução de 30 representara um avanço na vida do país.
- O senhor está ouvindo a versão da história contada por um dos lados. Eles mentem e ocultam as barbaridades que praticaram. Eu, por ser da família Dantas, sei bem do que estou falando e tenho outra história para lhe contar.
Ali estava um descendente de João Dantas, membro do clã que controlava o município de Teixeira, no sertão da Paraíba, durante a Primeira República. Apenas relembrando, adversário político de João Pessoa, João Dantas fora vítima de um lance sujo quando o jornal governista "A União" estampou, em sua primeira página, matéria entremeada de ofensas alusiva às relações amorosas que mantinha com a professora Anayde Beiriz.
A resposta do ofendido é conhecida: "lavou a honra", como se costumava dizer, assassinando a tiros João Pessoa, candidato a vice-presidente da República pela chapa da Aliança Liberal. Após a Revolução de 30, João Dantas e sua companheira suicidaram-se na penitenciária onde se encontravam presos, certos de que, com a vitória dos aliancistas, nunca sairiam da cadeia.
Lamento não ter marcado um dia para ouvir a história do doutor Dantas. Tudo terminou ali porque um dos integrantes do grupo com quem conversava me puxou pelo braço e fomos todos jantar.
Na história do Brasil, alguns dos acontecimentos mais importantes ocorridos a partir da última década do século 19 -a Abolição, a República, a Revolução de 30- deixaram pelo caminho setores sociais para os quais esses episódios representaram não só um retrocesso econômico, como também uma perda de status e de sentido da existência.
É bem verdade que no Brasil as transições são transadas e os que ficam à margem representam uma ínfima minoria composta por aqueles que viram a banda passar e não puderam ou não quiseram se incorporar a ela. Mas, de qualquer modo, eles existem.
No caso da Abolição, o núcleo geográfico da minoria se concentrou no Vale do Paraíba, representado pelos barões do café. Estes mantiveram a escravaria e as terras exaustas ao longo dos anos, enquanto se desenrolava diante de seus olhos um processo que chegaria ao que foi para eles um desastre.
O ato da princesa Isabel tornava o mundo sem significado e parecia constituir o passo inicial de uma catástrofe. Exemplificando, o barão de Cotegipe expressou com clareza esse sentimento quando afirmou dramaticamente no Senado imperial que, a partir daquele ato, a propriedade já não existia e tudo podia ser destruído por meio de uma lei. "Daqui a pouco", advertiu Cotegipe, "pedir-se-á a divisão das terras e o Estado poderá decretar a expropriação sem indenização".
A queda de Pedro 2º levou muitos personagens ilustres do Império à adaptação, mas marginalizou também gente teimosamente fiel ao trono. Essa gente tentou se rearticular e chegou mesmo a armar uma desesperada revolta monarquista em 1902, apesar do desinteresse da princesa Isabel no exílio parisiense, mais preocupada em conservar suas rendas do que em se associar a uma causa perdida.
Por sua vez, na terceira década do século 20, a Revolução de 30 deixou à margem "os carcomidos da política" e figuras mais modestas do PRP (Partido Republicano Paulista) que não se inclinaram à flexibilidade esperta dos dirigentes do partido após a Revolução de 1932.
Eles não só foram despojados de seus postos de mando como se sentiram invadidos por personagens estranhos que ocuparam São Paulo, exibindo fardas e trajes esquisitos, falando português com acento sulista ou nordestino.
Pois a família do dr. Dantas também viu seu mundo ruir, de uma forma dramática, após outubro de 1930. O assassinato de João Pessoa, até certo ponto explicável, converteu-se em um crime hediondo, com conotações exclusivamente políticas, pois os vencedores trataram de apagar seus aspectos privados. O clã amaldiçoado perdeu o prestígio e a parcela de poder que detinha no jogo oligárquico da Paraíba. Para o dr. Dantas, saído por uns minutos das sombras, a Revolução de 30 não podia ser lida sob a ótica da história-progresso e sim como o início de um tempo de tragédias e de desqualificação social.
Aprendi tudo isso em uma viagem aparentemente corriqueira a João Pessoa. Quem ousaria dizer que as salas austeras da Universidade de Columbia, de Oxford ou de Cambridge encerrariam lições de história desse porte?

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