São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996 |
Texto Anterior |
Próximo Texto |
Índice
Lições do aparentemente banal
BORIS FAUSTO
Logo na chegada, as pessoas que me receberam deram uma indicação da presença da Revolução de 30 na Paraíba. Eu teria a grande oportunidade -me disseram- de entrevistar José Américo de Almeida, proeminente figura revolucionária, ministro da Viação e Obras Públicas durante o governo provisório de Getúlio Vargas e, mais tarde, candidato à Presidência da República nas eleições de 1938, suprimidas pelo golpe do Estado Novo. À noite, fui fazer uma conferência em um auditório lotado, cheio de luzes, os ternos brancos se destacando na platéia. Tentei traçar uma interpretação do episódio revolucionário, e a partir do que já havia pensado e escrito, introduzindo aqui e ali um novo ângulo de abordagem. Não dei muito crédito ao "valor indômito da pequenina Paraíba", nem a acontecimentos em que avultava a morte de João Pessoa. Quando se abriram os debates, entre crítico e elogioso, um senhor se levantou e, ao iniciar uma longa digressão, enfatizou que só mesmo um paulista poderia falar da Revolução de 30 com tanta frieza. A presença do ícone José Américo, essa observação e outros sinais me fizeram perceber ao vivo uma dimensão histórica que podemos chamar de "temporalidade regional". No centro-sul, depois de ter servido de divisor de águas entre getulistas e antigetulistas, o episódio revolucionário perdera temperatura, convertendo-se em um episódio "frio" de nossa história. Não era assim na Paraíba onde, pelo menos no início da década de 80, a Revolução de 30 integrava, de algum modo, a vida presente. O que era passado longínquo em São Paulo se transformava em presente, ou pelo menos em passado muito próximo, em João Pessoa. Saí da conferência com um grupo animado e paramos para conversar numa praça tranquila, onde as imensas amendoeiras lançavam, a nossa volta, sombras extensas que a luz da iluminação de mercúrio não conseguia cortar. A conversa girava ainda em torno da história e tinha como pressuposto a noção de que a Revolução de 30 representara um avanço na vida do país. - O senhor está ouvindo a versão da história contada por um dos lados. Eles mentem e ocultam as barbaridades que praticaram. Eu, por ser da família Dantas, sei bem do que estou falando e tenho outra história para lhe contar. Ali estava um descendente de João Dantas, membro do clã que controlava o município de Teixeira, no sertão da Paraíba, durante a Primeira República. Apenas relembrando, adversário político de João Pessoa, João Dantas fora vítima de um lance sujo quando o jornal governista "A União" estampou, em sua primeira página, matéria entremeada de ofensas alusiva às relações amorosas que mantinha com a professora Anayde Beiriz. A resposta do ofendido é conhecida: "lavou a honra", como se costumava dizer, assassinando a tiros João Pessoa, candidato a vice-presidente da República pela chapa da Aliança Liberal. Após a Revolução de 30, João Dantas e sua companheira suicidaram-se na penitenciária onde se encontravam presos, certos de que, com a vitória dos aliancistas, nunca sairiam da cadeia. Lamento não ter marcado um dia para ouvir a história do doutor Dantas. Tudo terminou ali porque um dos integrantes do grupo com quem conversava me puxou pelo braço e fomos todos jantar. Na história do Brasil, alguns dos acontecimentos mais importantes ocorridos a partir da última década do século 19 -a Abolição, a República, a Revolução de 30- deixaram pelo caminho setores sociais para os quais esses episódios representaram não só um retrocesso econômico, como também uma perda de status e de sentido da existência. É bem verdade que no Brasil as transições são transadas e os que ficam à margem representam uma ínfima minoria composta por aqueles que viram a banda passar e não puderam ou não quiseram se incorporar a ela. Mas, de qualquer modo, eles existem. No caso da Abolição, o núcleo geográfico da minoria se concentrou no Vale do Paraíba, representado pelos barões do café. Estes mantiveram a escravaria e as terras exaustas ao longo dos anos, enquanto se desenrolava diante de seus olhos um processo que chegaria ao que foi para eles um desastre. O ato da princesa Isabel tornava o mundo sem significado e parecia constituir o passo inicial de uma catástrofe. Exemplificando, o barão de Cotegipe expressou com clareza esse sentimento quando afirmou dramaticamente no Senado imperial que, a partir daquele ato, a propriedade já não existia e tudo podia ser destruído por meio de uma lei. "Daqui a pouco", advertiu Cotegipe, "pedir-se-á a divisão das terras e o Estado poderá decretar a expropriação sem indenização". A queda de Pedro 2º levou muitos personagens ilustres do Império à adaptação, mas marginalizou também gente teimosamente fiel ao trono. Essa gente tentou se rearticular e chegou mesmo a armar uma desesperada revolta monarquista em 1902, apesar do desinteresse da princesa Isabel no exílio parisiense, mais preocupada em conservar suas rendas do que em se associar a uma causa perdida. Por sua vez, na terceira década do século 20, a Revolução de 30 deixou à margem "os carcomidos da política" e figuras mais modestas do PRP (Partido Republicano Paulista) que não se inclinaram à flexibilidade esperta dos dirigentes do partido após a Revolução de 1932. Eles não só foram despojados de seus postos de mando como se sentiram invadidos por personagens estranhos que ocuparam São Paulo, exibindo fardas e trajes esquisitos, falando português com acento sulista ou nordestino. Pois a família do dr. Dantas também viu seu mundo ruir, de uma forma dramática, após outubro de 1930. O assassinato de João Pessoa, até certo ponto explicável, converteu-se em um crime hediondo, com conotações exclusivamente políticas, pois os vencedores trataram de apagar seus aspectos privados. O clã amaldiçoado perdeu o prestígio e a parcela de poder que detinha no jogo oligárquico da Paraíba. Para o dr. Dantas, saído por uns minutos das sombras, a Revolução de 30 não podia ser lida sob a ótica da história-progresso e sim como o início de um tempo de tragédias e de desqualificação social. Aprendi tudo isso em uma viagem aparentemente corriqueira a João Pessoa. Quem ousaria dizer que as salas austeras da Universidade de Columbia, de Oxford ou de Cambridge encerrariam lições de história desse porte? Texto Anterior: Cenas de um deliberado despojamento Próximo Texto: Movimentos de inversão da grande Babel Índice |
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress. |