São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Movimentos de inversão da grande Babel

HÉLIO SCHWARTSMAN
EDITOR DE OPINIÃO

Ninguém duvida de que as línguas evoluam. De outra forma, ainda estaríamos falando o proto-indo-europeu, com seus oito casos de declinação e vocabulário não superior a pouquíssimos milhares, talvez apenas centenas de palavras.
Com a evolução, contudo, vêm a diferenciação entre os idiomas e a sofisticação vocabular. Basta lembrar que línguas tão díspares como o inglês e o russo já tiveram a mesma origem. À medida, porém, que esses povos foram se afastando e criando culturas próprias diferenciadas, os modos de falar foram-se alterando até tornarem-se irreconhecíveis entre si, e o vocabulário foi adquirindo novos termos ou mudando de nuança. Um exemplo eloquente é o termo "esquisito" que em espanhol, por exemplo, significa "saboroso", quase o contrário do português.
Tudo isso está evidentemente relacionado à vivência de uma dada sociedade. Enquanto o português limita-se à "neve" ou "camelo" e "dromedário", os esquimós e árabes têm dezenas de palavras para designar cada tipo de neve ou de camelo possíveis, acusando todas as variações. Foi entretanto com o grande salto científico observado a partir do século 19 que o vocabulário das chamadas línguas de cultura deu um grande salto.
Um grego clássico bastante pedante teria dificuldades para utilizar mais de 5.000 palavras em um texto. O português, hoje, conta com cerca de 400 mil vocábulos; o inglês supera 1 milhão. Para a comunicação do dia-a-dia, contudo, 3.000 palavras são mais do que suficientes; o resto é do domínio da ciência. Há de se notar ainda que não se computam nesses números as centenas de milhares de nomes de espécimes vivos (que são batizados por seus nomes científicos em latim) e a infinidade de compostos químicos cujos nomes se formam por aglutinação de prefixos, infixos e sufixos.
Vive-se hoje até um fenômeno curioso, pelo qual os idiomas voltam a se reaproximar. Uma palavra como "hotel" é quase universal, variando apenas a pronúncia. Esse mesmo fenômeno se aplica a boa parte do vocabulário científico, num movimento que, pelo menos em determinadas áreas, tende a desfazer a grande Babel.
Outro ponto curioso é a evolução autóctone de termos advindos de outros idiomas. Como bem lembrou José Geraldo Couto em recente artigo nesta Folha, do "back" (trás) inglês surgiram abrasileiramentos ou expressões como "beque", "becão" e "beque de fazenda", para ficar em apenas um exemplo.
Até preconceitos claros às vezes entram despercebidos, perdidos no tempo: "judiar" (agir como judeu) "beócio" e "capadócio" (duas regiões gregas cujos habitantes eram tidos pelos atenienses como curtos de inteligência).
Enfim, língua é dinâmica, numa relação dialógica seja de aproximação ou de afastamento. É inútil lutar contra isso. Esse fenômeno, porém, não justifica os maus-tratos a que o vernáculo vem sendo submetido. Quantas vezes você, leitor, já viu a palavra "coco" escrita corretamente, sem aquele incômodo acento sobre o primeiro "o"?

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