São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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A revolta dos ignorantes

GILBERTO DIMENSTEIN

A polêmica sobre a qualidade das faculdades brasileiras, detonada por um teste de avaliação dos alunos, ainda não arranhou a imprensa brasileira. Deveria. Vamos ser honestos com o leitor: estamos falhando.
Previsto para ser aplicado na próxima semana, o chamado "provão" gerou ruidoso debate entre professores, UNE e o governo federal sobre a conveniência ou os métodos para se avaliar o ensino superior.
O cidadão depende, exclusivamente, da ofensiva oficial para saber se as faculdades gastam bem o dinheiro extraído de impostos ou das mensalidades.
O exame vai estar vulnerável a eventuais pressões e acertos políticos, costurados em Brasília, na briga entre o Ministério da Educação e as corporações.
O exame é um avanço, mas insuficiente. A tarefa é grande demais para ficar apenas nas mãos de um ministro.
A experiência americana é exemplar -e ajuda a explicar porque estão aqui as melhores faculdades do mundo.
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As mais importantes avaliações das faculdades americanas, conduzidas por equipes de acadêmicos e intelectuais, são patrocinadas pela imprensa.
Apenas um exemplo: três das mais importantes revistas do país -"Time", "Newsweek" e "US News & World Report"- divulgam anualmente o ranking das melhores universidades, em edição especial.
Elas se baseiam em uma imensa variedade de critérios: qualificação dos professores, invenções científicas, atualização das bibliotecas, sofisticação dos laboratórios.
Antes de fazer a opção por essa ou aquela escola, o estudante tem à disposição guias do consumidor, e a sociedade, um instrumento para avaliar setor tão vital para seu progresso.
A imprensa americana reflete as angústias e prioridades da nação. Basta ver como o tema educação está no topo da agenda da sucessão presidencial, que se encerra nesta semana.
Cada candidato desfila dezenas de críticas e propostas sobre como se deveria educar, melhorando todos os níveis de ensino para que não se perca competitividade internacional. "Já estão exigindo do trabalhador americano pelo menos dois anos de faculdade", afirma José Alexandre Sheinkman, diretor da Faculdade de Economia da Universidade de Chicago. No Brasil, a maioria dos trabalhadores não tem quatro anos de estudo.
Mutirões de pais, professores e alunos nos feriados e finais de semana reformam as escolas nos EUA, adaptando-as às novas tecnologias.
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Os jornalistas brasileiros foram guiados nas últimas três décadas pela agenda de Brasília, contaminada por constantes sobressaltos causados pela ausência de democracia, inflação, recessão ou corrupção.
Se tivéssemos prestado mais atenção, as universidades não se deteriorariam com tanta rapidez e profundidade, comprometendo bibliotecas e laboratórios. Talvez o salário do professor não fosse tão degradado. Provavelmente não existiriam também as aposentadorias precoces, um escândalo.
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Quando conto aqui que um professor universitário brasileiro tem condições legais de se aposentar aos 50 anos, muita gente pergunta se não estou enganado; outros querem saber se os pais e alunos não se rebelam. Há aqueles que demonstram interesse quase antropológico, como se ouvissem um exótico costume tribal.
Compreensível: professores idosos, se arrastando curvados pelos corredores, fazem parte do cenário universitário americano.
No mês passado, um professor de Columbia, em Nova York, morreu três dias depois de ganhar o Prêmio Nobel de Economia. Tinha 83 anos e ia todos os dias à faculdade, onde tinha uma sala minúscula.
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A própria reação histérica ao "provão" já é um sinal de indigência, numa revolta da ignorância. É resultado, em essência, do medo de que a sociedade descubra o que já sabemos: as universidades são, em geral, ruins, e os centros de excelência, exceções.
O movimento da UNE faz lembrar um episódio da história brasileira conhecido como "Revolta da Vacina". Um levante popular iniciado em 10 de novembro de 1904 paralisou a então capital do país, o Rio de Janeiro, por dez dias. O motivo: a campanha obrigatória de vacinação contra a varíola. O pai da campanha, Oswaldo Cruz, um dos homens mais notáveis que o Brasil já produziu, foi perseguido e teve de fugir.
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Sinais de evolução da agenda social brasileira:
1) A Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo decidiu ensinar saúde pública aos futuros jornalistas. O curso, patrocinado pela Fundação McArthur, dos EUA, terá ênfase em saúde reprodutiva. Um tema tão relevante quanto relegado a segundo plano do Brasil.
2) Num convênio com o Instituto Ayrton Senna, a Universidade Columbia, em Nova York, vai dar duas bolsas para jornalistas brasileiros. A partir de 97, eles farão especialização em direitos humanos e infância. Quem ganhar a bolsa sobre infância poderá estudar por um ano na faculdade de jornalismo considerada, hoje, a melhor do mundo.
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PS - A Teachers College, a faculdade de pedagogia de Columbia, criou um curso para ensinar os jornalistas a cobrir educação.

E-mail GDimen@aol.com
Fax (001-212) 873-1045

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