São Paulo, domingo, 3 de novembro de 1996
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Uma campanha sem cara

MILTON SANTOS

Já se conhece, desde agora, um dos resultados do pleito municipal do próximo dia 15 de novembro: a morte da política, com a perda cruel dessa rara oportunidade de debater problemas centrais do nosso tempo e de nossa cidade.
Em matéria de democracia, estamos assistindo a um verdadeiro retrocesso, quando o essencial dos debates, além das costumeiras diatribes de cunho pessoal, gira em torno de séries estatísticas, construções materiais e promessas de consumo, tudo isso desligado de um texto maior, onde o destino das coletividades -e não apenas de cada pessoa particular- seja seriamente considerado.
Parece até que tudo se resume a explorar, mais e mais, o fascínio deste fim de século pelas cifras e pelas coisas e a rendição do homem comum frente aos objetos, sobretudo aqueles que permitem utilizar ainda mais objetos (a estabilidade da moeda e o consumo conspícuo, as estradas e o automóvel, a educação fragmentada e as perspectivas de sucesso material imediato...).
É a coisificação da política. Daí, talvez, o relativo sucesso da democracia de mercado. Mas terão também os partidos de esquerda renunciado a criar neste país uma vida política autêntica? Será, igualmente, vedado às direitas utilizar a linguagem dos valores?
Uma das consequências do presente processo de globalização é, exatamente, a dificuldade para encontrar ou atribuir um sentido aos objetos que nos rodeiam e às ações em que estamos envolvidos. Tudo ou quase tudo se apresenta confusamente, a começar da própria noção de cidadão, central no exercício da democracia, mas, agora, substituída pela figura do consumidor ou do usuário, em torno da qual se constrói a atual democracia de mercado.
Daí a pobreza do debate sobre as questões ditas municipais, apresentadas por gregos e troianos como se fossem apenas problemas locais. Daí o embevecimento equivocado, transmitido aos eleitores, por centímetros de córregos canalizados, dezenas de janelas implantadas e pelo número de postes informatizados, como se cada qual dessas coisas, úteis à existência material cotidiana, pudesse ser entendida fora de um modo de vida que primeiro constrói carências materiais e culturais e sociais e políticas, para depois dar remédio, fragmentário e insuficiente, apenas às carências materiais, omitindo-se quanto aos outros reclamos, dos quais advém o verdadeiro sentido da vida humana.
Um erro palmar, praticamente repetido por todos os candidatos desde o primeiro turno, é a recusa a considerar a nova definição do fenômeno urbano na era da globalização. Todas as cidades, sobretudo as grandes, ganham sua cota de globalidade, sem cuja consideração nada pode ser entendido.
Mas a globalização afeta todo o território nacional, mudando, brutal e cegamente, os equilíbrios e as perspectivas, mas, sobretudo, trazendo um fermento de desagregação, um impulso à quebra dos cimentos nacionais pacientemente construídos e comprometendo a idéia de nação e de solidariedade. Esse impulso à desunião interna é tanto mais eficaz quanto mais ajudado pelo aparelho de Estado, como no caso brasileiro, onde, dizendo querer ser menor, o Estado se torna um forte coadjuvante no processo de agredir a nação.
O fato, porém -é o que estamos, agora, efetivamente, assistindo-, é que a nação se refugia nas cidades, onde parece construir uma trincheira contra as forças desagregadoras, pois nenhuma cidade, por mais forte e poderosa que seja, vive plenamente seu destino sem cuidar, de modo sistemático, de suas relações com as outras cidades do mesmo país.
É o caso de São Paulo. A globalização faz com que as cidades se tornem ainda mais nacionais, exigindo mais Estado para regular suas relações necessárias.
Uma campanha eleitoral apenas preocupada com miudezas (ainda que possam interessar a milhões) não chega a ser uma campanha política. Acaba sendo um exercício de despolitização, no qual partidos de direita e de esquerda, sob o comando do "marketing", comportam-se como se as eleições fossem apenas um mercado de votos e não a solene ocasião para discutir projetos de sociedade.

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