São Paulo, quarta-feira, 13 de novembro de 1996
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Aqui, tudo é mercado e privilégio a um só tempo

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O Brasil é um imenso mercado. Não faz muito tempo, lançaram uma revista dedicada exclusivamente ao público negro de classe média. Turismo no Pelourinho, soluções para o seu cabelo, lugares aonde ir -coisas, enfim, de interesse para essa faixa de consumo.
Pensei que a revista tivesse vida curta, que não há no Brasil tantos negros assim podendo consumi-la. Ledo engano. A revista esgotou-se nos primeiros dias, tem mais de cem mil exemplares em circulação.
Faço parte de uma minoria, a dos que gostam de música clássica. Há vários meses eu vinha comprando uma revista inglesa, a "Classic CD", que, além de resenhas sobre lançamentos de música clássica em compact-disc, traz como brinde um disco, com mais de uma hora de duração, cheio de amostras grátis e excertos dos lançamentos mais importantes do mês. Tudo isso a menos de R$ 15.
"Como é bom saber inglês", pensei, ouvindo com fervor diletante o CD a preço baixo que me era garantido na banca de jornais da esquina.
Mas a surpresa máxima é que essa revista, dedicada unicamente à música clássica, e com um CD grátis incluído, está sendo agora editada no Brasil, ao preço de R$ 10.
Será que já estamos no primeiro mundo? De qualquer modo, o amante de música clássica, assim como a minoria de negros de classe média, prova-se capaz de consumir.
Há vários fenômenos em jogo, para além da simples "ascensão social", no caso dos negros, ou da "internacionalização", no caso dos melômanos. Com todas as suas carências, o Brasil tem mostrado suficiente poder econômico para importar espetáculos de primeira qualidade.
Ivo Pogorelich, Evgeny Kissin, os dois maiores pianistas da atualidade, apresentaram-se em São Paulo. Orquestras como o Gewandhaus, o Concertgebouw, já são quase arroz de festa. Cecilia Bartoli apresentou-se outro dia. Estaremos no primeiro mundo?
A revista de CD clássico parece dizer que sim. E parece ser sinal de alguns outros acontecimentos, que registro aqui.
O primeiro diz respeito à pura inovação tecnológica representada pelo CD. Consiste no seguinte: o apreciador de música clássica já tinha formado sua discoteca básica em vinil. Beethoven, Brahms, Bach, Vivaldi, tudo isso interessa pouco ao consumidor, uma vez que ele já tem seus velhos discos.
O advento do CD determinou uma paixão pela descoberta. Basta ver os lançamentos de CDs noticiados pela revista para notar que a história da música clássica está sendo reesecrita.
O leitor que aprecia a música clássica certamente já ouviu falar de Carl Nielsen, de Francis Poulenc, de Edward Elgar, de Max Reger. São compositores semi-notáveis, correspondem ao "terceiro time" da fama universal. Mas o que dizer de Salter, Schulhoff, Maw, Aarvo Part, Bowen?
Esses compositores são resenhados na revista, estão com CDs no mercado. Mesmo quem conhece de cor as sinfonias de Vaughan Williams ou os motetos de Palestrina tem, desse modo, trabalho pela frente.
A mera invenção do CD repôs, dada a voracidade do mercado, um número imenso de compositores em circulação. Acredito que tenha tido outra consequência: modificou nosso modo de ouvir música.
Um tom mais preciso, mais seco, mais nítido, passou a ser valorizado. As recuperações do modo de tocar música barroca, a voga dos "instrumentos originais", antecedem o CD. Mas é no CD que encontram seu veículo.
Por outro lado, ocorre um movimento de popularização da música clássica. Começou com a ópera, os três tenores. Mas a coisa já se estendeu bastante. Grandes instrumentistas aparecem hoje em dia com brinquinho na orelha, cabelo punk, poses de top-model. E sua interpretação dos clássicos tende a ser muito roqueira, muito heavy metal.
Digo isso ouvindo a gravação de um concerto para violino de Bach, que consta do CD-brinde da revista. A violinista se chama Viktoria Mullova, é uma russa de 37 anos, e há uma foto sua em que parece uma daquelas jogadoras de vôlei que viraram musas da "Playboy".
Bach, na faixa 6 do CD, torna-se um músico de hard-dancing. É uma surpresa admirável, virtuosística, eletrizante. O mesmo pode ser dito de Toscanini interpretando uma passagem do "Réquiem" de Verdi, na faixa 12: é coisa digna do grupo Sepultura.
Mas há outras surpresas em curso. O pianista Percy Grainger, por exemplo. Foi famoso nos anos 20 e 30. Mas foi também compositor, e a revista mostra um trecho de uma obra sua baseada em Rudyard Kipling. Trata-se de um coral que é puro encantamento, pura descoberta. A música se desdobra, sentimental, imensamente. Percy Grainger! Quem sabia de sua existência?
A revista do CD sofre de claro parti-pris britânico. Vaughan Williams, Tippet, Elgar, Delius aparecem a cada página. Mas a vantagem dessa atitude novidadeira e nacionalista do CD é que, por seu turno, Villa-Lobos e Carlos Gomes acabam entrando no circuito internacional.
O trecho mais bonito da dramaturgia universal talvez seja, não alguma passagem de Shakespeare ou de Racine, mas um diálogo do "Hernani" de Victor Hugo.
Hernani e Dona Sol acabaram de se casar. Os ruídos da festa se extinguem. Os dois estão a sós. "Tout s'est éteint, flambeaux e musique de fête./ Rien que la nuit et nous", diz a mulher (Tudo está apagado, tochas e música de festa. Nada além da noite, nada além de nós...).
Face ao silêncio, a mulher suspira: "Ce silence est trop noir, ce calme trop profond" e pergunta ao marido: "Dis, ne voudrais-tu voir une étoile au fond? Ou qu'une voix des nuits, tendre et délicieuse, s'élevant tout à coup, chantât?" (É negro demais este silêncio, profunda demais esta calma... Dize-me, não gostarias de ver uma estrela atrás de tudo isto? Ou que uma voz noturna, deliciosa e terna, alçando-se agora, cantasse?).
O marido mal responde. Mas, ao longe, atrás da cena, Victor Hugo resolveu que um som de trompa, vindo do fundo da noite, fosse ouvido. A mulher então suspira: "Dieu! Je suis exaucée!" (Deus! Exauri-me!).
Essa exaustão, essa completude imensa e casual, essa perfeição que não nos pertence mas nos completa, é o milagre da música. Eu estava ouvindo a composição de Percy Grainger, fui à estante procurar o trecho de Victor Hugo, e no exato momento em que Dona Sol suspirava o pacto de seu amor noturno, o CD da revista, mudando de faixa, entrava triunfal e triste nos começos, cordas e trompas de uma sinfonia de Brahms.
Aquela amplidão, aquele fôlego imenso -explicados didaticamente no texto da revista-, aquela noite grandiosa, gravitando calma ao redor de mim, me exauriu também.
Que privilégio! E ao alcance do mercado brasileiro! É que tudo, no Brasil, é ao mesmo tempo mercado e privilégio...

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