São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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A democracia em questão

MARIA DA CONCEIÇÃO TAVARES

Hoje não quero discutir economia, até porque me parece desnecessário repisar os fracassos fiscais e a armadilha do balanço de pagamentos, bem como os impactos sobre o crescimento e o emprego provocados pela política econômica do atual governo. Sobre eles existe hoje uma crescente consciência e preocupação por parte de especialistas de todas as tendências e de setores sociais cada vez mais amplos.
Parece-me mais oportuno insistir sobre os abusos do poder executivo que estão descaracterizando quaisquer veleidades de governo democrático que a atual "plutocracia" no poder porventura ainda mantenha.
Para ir direto ao ponto, convém lembrar o pensamento de seis anos atrás do atual presidente da República sobre o abuso das medidas provisórias, como instrumento de "governabilidade". Cito textualmente de um artigo seu publicado nesta Folha, em 07/10/1990:
"O Executivo abusa da paciência e da inteligência do país quando insiste em editar medidas provisórias sob o pretexto de que, sem sua vigência imediata, o Plano Collor (leia-se hoje Real) vai por água abaixo e, com ele, o combate à inflação".
"Com esse ou com pretextos semelhantes, o governo afoga o Congresso numa enxurrada de 'medidas provisórias' etc. O resultado é lamentável: Câmara e Senado nada mais fazem do que apreciá-las aos borbotões".
E mais adiante: "Ontem a Comissão de Constituição e Justiça da Câmara aprovou um projeto de autoria do deputado Jobim que torna claro o âmbito de matérias legislativas dentro do qual o presidente pode emitir medidas provisórias e, embora se admita a insistência delas quando não apreciadas pelo Congresso (o que já é uma demasia), não se permite -obviamente- que o presidente reedite a medida rejeitada pelo Congresso".
Segue-se uma conclusão particularmente relevante: "É certo porém que, seja qual for o mecanismo, ou o Congresso põe ponto final no reiterado desrespeito a si próprio e à Constituição, ou então é melhor reconhecer que no país só existe um poder de verdade, o do presidente. E daí por diante esqueçamos também de falar em democracia".
Eu assino embaixo. O indignado articulista obviamente mudou de ponto de vista, imbuído que está do seu papel de presidente imperial, a quem tudo é permitido em nome de um "realismo político" que lhe permite fazer tábua rasa de princípios que defendeu durante décadas, e da própria Constituição que ajudou a promulgar e jurou cumprir.
Desde o início do atual governo até ao final de outubro p.p. já foram editadas 61 medidas provisórias novas, das quais 49 foram reeditadas mais de 500 vezes, além da reedição das medidas do governo Collor, contra as quais o então senador FHC protestou. A fúria legislativa já leva, entre edições e reedições (mensais), a mais de 1.600 MPs, superando o dobro da soma dos dois governos anteriores.
Além disso, modificou pontos importantes de várias MPs, como no caso da que altera a lei 8.031/90, que criou o programa nacional de desestatização, ampliando os poderes do Conselho Monetário Nacional.
Em 1995, apenas 15 Comissões Especiais foram instaladas e tiveram seus respectivos pareceres emitidos; foram votadas e aprovadas 19 MPs, das quais somente 7 originadas do atual governo. Em 1996, apenas 9 Comissões Especiais foram instaladas e emitiram pareceres; sobre novas MPs que não foram aprovadas. Em realidade, a última MP aprovada foi a que autorizava a equalização de encargos financeiros do crédito rural, sob a forma de projeto de lei de conversão, em 22 de novembro do ano passado.
Os esforços da oposição, e de outros parlamentares conscientes de suas responsabilidades institucionais, para apreciar e regulamentar as MPs tem sido, como no caso emblemático do Proer, sistematicamente obstaculizados pelo bloco majoritário da aliança fisiológico-conservadora que sustenta o atual governo.
O apoderamento pelo Executivo da função legislativa do Congresso tem graves implicações em todos os níveis da vida política e social, já que as medidas provisórias cobrem um amplo espectro de matérias. Algumas são de importância menor -assuntos rotineiros de administração cuja relevância e urgência é escassamente perceptível.
Outras, no entanto, têm, sim, extraordinária relevância, dado que cancelam direitos adquiridos, impactam as condições de vida e trabalho de milhões de pessoas, ferem preceitos constitucionais, comprometem recursos públicos, desviam recursos dos trabalhadores de suas finalidades, "antecipam" reformas constitucionais ainda em fase de discussão, anulam decisões de instâncias do Congresso, dispõem sobre a utilização de recursos do país e a alienação do patrimônio público etc.
Por isso mesmo, deveriam ser discutidas e analisadas séria, ampla e publicamente, sem os atropelos de "urgências" artificiais determinadas por interesses de grupos econômicos internos ou externos, ou manifestações de fundamentalismo dos ideólogos da "nova ordem".
A aceitação passiva por parte do Congresso dessa nova versão autoritária de legislação por decreto o impacta em duas dimensões institucionais. Por um lado, anula sua função fiscalizadora da administração; por outro, transfere, na prática, as decisões sobre questões de interesse social e nacional, que deveriam ser discutidas de forma transparente e exaustiva no Parlamento, para os escritórios fechados e inacessíveis -pelo menos para os que vivem do seu trabalho- do núcleo de plutocratas que comanda o aparato governamental.
Um dos exemplos mais ilustrativos do arbítrio do Executivo e subserviência do Congresso é o da medida provisória que "dispõe sobre o reajuste do salário mínimo e dos benefícios da Previdência Social, altera alíquotas de contribuição para a Seguridade Social e institui contribuição para os servidores inativos da União", já na sexta edição.
A cobrança de contribuição dos inativos para a Previdência havia sido objeto de um projeto de lei do Executivo, que foi rechaçado pela Câmara dos Deputados. Ao ser derrotado, o governo editou então a MP, instituindo, "na marra", a citada contribuição. Apesar da inconstitucionalidade desta cobrança, o Congresso até hoje não se pronunciou sobre a matéria.
Todos esses aspectos e muitos outros amplamente comentados pela imprensa -em particular a maneira como está sendo conduzida a operação reeleição- desmascara o autoritarismo deste governo que promove a crescente descaracterização funcional e institucional do Congresso Nacional, o aumento da exclusão formal e real dos setores majoritários da população e a centralização do poder no núcleo dirigente do Executivo.
É evidente que a desmoralização do Congresso Nacional -com a conivência irresponsável da aliança conservadora governamental, hegemônica em ambas Casas- questiona tanto a consolidação do processo democrático quanto a legitimidade das políticas e instituições implantadas pelo atual governo. O Congresso ainda está em tempo de reagir, elegendo para a presidência da Câmara e do Senado figuras independentes, capazes de restaurar um mínimo de autonomia, dignidade e respeito público para as instituições que deveriam representar o povo.

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