São Paulo, domingo, 17 de novembro de 1996
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O espelho oblíquo

BETTY MILAN
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Jorge Lavelli nasceu na Argentina, como outro grande diretor de teatro contemporâneo radicado em Paris, Alfredo Arias.
Foi para a França como bolsista do governo argentino. Ao terminar a Universidade do Teatro das Nações, em 1963, participou do concurso nacional das companhias jovens e obteve o grande prêmio. Depois disso, radicou-se na França e naturalizou-se francês. Em 1987, foi nomeado diretor do Teatro Nacional da Colina por dez anos e, em 1995, recebeu a Legião de Honra. Ganhou vários prêmios Molière, entre eles, pelas peças "Opereta", de Gombrowicz, "Heidenplatz", de Thomas Bernhard, e "Comédias Bárbaras", de Valle-Inclán.
Na entrevista a seguir, Lavelli fala sobre sua orientação para o Teatro Nacional da Colina na temporada de 1996-1997, a última que ele dirige, e diz o que se pode esperar do teatro hoje.
*
Folha - A temporada de 96-97 é a sua última no Teatro Nacional da Colina. O repertório é assinado por autores contemporâneos, todos eles vivos. Gostaria que o sr. falasse sobre as duas peças que dirige: "Slaves", do americano Tony Kushner, e "Molly S.", do irlandês Brian Friel.
Jorge Lavelli - Em "Slaves", de Kushner, um autor muito conhecido, trata-se do fim do sonho soviético. Mas o autor não focaliza somente os problemas políticos, econômicos, sociais e ideológicos da Rússia. Interroga-se sobre "os problemas eternos colocados pela virtude e a felicidade". Podemos ainda acreditar numa sociedade nova? O que é preciso fazer para mudar a que existe? Com "Slaves", criada em 1991, Kushner ganhou o Prêmio Pulitzer. Anteriormente, ele havia escrito "Angels in America", sobre o fim do sonho americano...
Folha - E "Molly S."?
Lavelli - Seu autor, o irlandês Brian Friel, já é um clássico. A peça foi representada em Londres e Nova York, e seu tema é muito interessante. Molly, que tem 40 anos, ficou cega com dez meses de idade. No universo dela, a visão é dispensável. Sabe reconhecer as plantas pelo odor, as pessoas pelo ritmo dos passos, pelo som da voz. Mas o marido quer que ela recupere a visão. Acaba convencendo um grande oftalmologista a operá-la. Molly, no entanto, resiste à idéia da operação, por temer que o país da visão seja o do exílio. A peça se estrutura em torno dessa resistência. Os personagens nunca dialogam, falam alternadamente. São três versões da existência, que nos fazem refletir sobre a diferença entre as pessoas e as relações entre a visão e o conhecimento.
Folha - Os dois autores que o sr. vai dirigir são internacionalmente conhecidos, porém há no repertório um autor que vai ser lançado na França, o argentino Ricardo Sued. O sr. poderia falar sobre o trabalho de Sued?
Lavelli - Assisti à última peça dele na Argentina e fiquei muito impressionado. Chama-se "Bombom Acidulado". Depois da morte do pai, Maria, que tem 22 anos, vai deixar a casa onde nasceu. Uma foto, um jornal velho e uma carta a fazem reviver o passado. Os momentos da infância se alternam na peça -desordenadamente ou segundo a ordem da memória-, com um presente infeliz, o do exílio, da morte da mãe, da desaparição de uma conhecida sob o regime militar... Para nos introduzir na viagem de Maria, Sued, que é autor e diretor, deixa os espectadores na mais completa escuridão. Vemos então, como num sonho, um cigano, um gnomo, um arco-íris. É um percurso mágico, que ensina a não ter medo do escuro.
Folha - Quer dizer que tanto em "Molly S." quanto em "Bombom Acidulado" há uma supressão da visão... Talvez porque precisemos redescobrir os outros sentidos, o tato, o olfato e a própria escuta.
Lavelli - Sim.
Folha - Além de introduzir autores novos, o sr. privilegia peças cuja modernidade é evidente... O sr., aliás, declarou, a propósito de "Arloc", do repertório de 95-96, que ela o tocou por sua modernidade...
Lavelli - Sim, esta peça de Serge Kribus não trata somente da intolerância, de um certo racismo, que são temas atuais, porém do estrangeiro na cidade, e nunca antes tantas pessoas partiram de seus países de origem por causa da guerra, dos combates étnicos, da fome e da intolerância... Partiram para serem estrangeiras em outras cidades, para nelas serem aceitas, toleradas ou eliminadas, como Arloc, que deixou a África pela França, onde foi assassinado.
Folha - O que o teatro pode neste fim de século e o que se deve esperar dele no futuro?
Lavelli - O teatro mostra a vida como ela é. Trata-se de um artifício poderoso. Precisamente por sua artificialidade, ele permite interferir na dor vivida e apaziguá-la. É um espelho oblíquo, oferece a possibilidade de refletir... Desde Shakespeare, o autor que mais nos iluminou, os dramaturgos meditam sobre a condição humana.

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