São Paulo, segunda-feira, 18 de novembro de 1996
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A vida sem festa

CARLOS HEITOR CONY

Rio de Janeiro - Faz hoje um ano que Ênio Silveira abriu seu apartamento no Parque Guinle para receber os amigos que desejavam comemorar seus 70 anos e a recente vitória que ele conseguira contra uma crise cardíaca. Ele se antecipou e, em vez de ser homenageado, quis homenagear os amigos.
Mandou-nos um bilhete-convite dizendo que estivera às portas do outro lado "e não gostara". Por isso pedia que todos fossem comemorar uma "festa da vida".
Ênio fazia questão de nos ver, de mostrar o quanto nos queria e saber, mais uma vez, o quanto era querido. Morreria 50 dias depois, mas a sua vida e a sua festa foram bonitas.
Seus editados estavam todos lá. Ou quase todos. Um que faltava e que era do especial carinho de Ênio dificilmente estaria em qualquer festa. Era um antifesta profissional. Chamava-se João Antônio, foi descoberta de Ênio, que o lançou com todas as honras, apesar do tipo de literatura marginal que praticava -e praticou até o fim.
Marginal na literatura, um de nossos maiores contistas, João Antônio apareceu morto no quarto em que vivia isolado e sempre na dele. A crítica o classificava como um novo Lima Barreto -o que me parece falso. Lima era, em essência, um literato, genial, mas literato. João Antônio abraçou a literatura como subproduto de sua visão de mundo, uma visão amarga como a de Lima Barreto, mas bem mais do que isso.
Ao contrário de Ênio, João Antônio não queria participar da festa, mas da guerra da vida. Uma guerra em que a única vítima era ele próprio. Tenho dele um vídeo feito em Berlim, quando lá esteve a convite de uma universidade local. Parecia deslocado entre os sofisticados professores que o entrevistavam.
Ênio lhe deu a força necessária, mas João Antônio era um personagem de João Antônio: a mesa de sinuca, o copo de cerveja quente, a barba da contestação. Ele. A vida sem festa.

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