São Paulo, segunda-feira, 18 de novembro de 1996
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Violência e democracia

ROBERTO ROMANO

Enquanto as universidades se transformam no cartório vazio das seitas acadêmicas, a sociedade civil procura soluções para problemas graves e urgentes. Desse modo, ocorreu em São Paulo, no mês de outubro último, debate sobre a violência patrocinado pelo Sesc. Expositores defenderam diagnósticos contrários, como é a regra no campo democrático. Os representantes do Reage São Paulo apresentaram reivindicações às autoridades em mesas-redondas tensas, mas sem demagogia.
Dentre as teses apresentadas, importa recolher as expostas pelo sr. Abram Szajman, representando a federação do comércio. O Estado precisa, disse ele, dar mostras claras de que vai assumir a sua responsabilidade, renunciando "ao dramático processo de privatização que vem promovendo na área social, ao abandonar algumas funções que lhe são inerentes, como a educação, a segurança e a Justiça".
Do mesmo modo, continua o mesmo líder do comércio, "como a expansão da rede privada de ensino testemunha da falência do ensino público, a proliferação dos serviços de segurança privada, mobilizando milhares de homens armados, é a expressão mais acabada da privatização do poder de polícia". Indo além desse lúcido diagnóstico, indiquemos algumas fontes, nessa privatização do ensino e segurança públicos.
A ditadura militar estatizou a economia e privatizou os serviços sociais, sobretudo a educação e a segurança. Todos os seus atos foram aplaudidos pelos dominantes. A classe média, em 1964, também temia a violência dos "subversivos". Ela representou boa massa de manobra, apoiando o golpe conservador.
Mas os crimes contra o Estado de Direito trouxeram efeitos terríveis e inesperados. A palavra dos ditadores dispensa a cidadania. A partir daí, inexiste sociedade em sentido estrito. Os particulares se sentem dispostos a tudo para manter uma esperança, mesmo que errônea, de boa vida corpórea, anímica, cultural. O cinismo dos bem nutridos exaspera os pobres. Hoje, importa privatizar o setor econômico, tornando públicos os serviços sociais. Para isso é preciso democracia.
Para atender exigências dos bem-aquinhoados, o ensino público, na ditadura, recebeu um golpe de misericórdia. O governo castrense se esmerou no desmonte das escolas oficiais, bases de resistência ao regime. Nos vários prismas do acordo MEC-Usaid, podemos perceber outras causas para a falência do ensino público.
É preciso citar a repressão ideológica brutal. Recordemos a censura aos escritores e à imprensa, a perseguição, o boicote que destruiu experiências importantes, como os colégios vocacionais. Redes escolares foram fechadas em nome dos valores "cristãos" e para gáudio do ensino privado, laico ou religioso. Certas críticas da hierarquia católica conservadora, hoje, ao processo privatista são obra do esquecimento estratégico.
A ditadura aplicou no país essa política em nome da "segurança nacional". A quebra da ordem democrática não funcionou. A prova é a insegurança coletiva sentida ainda em nossos tempos. O poder batizado no Ato Institucional nº 1 com uma frase terrível ("A revolução legitima a si mesma") afastou a cidadania do controle sobre corpos e almas, produzindo o sumiço da fé pública.
Não elegendo os governantes, as pessoas não percebiam o Estado como sua propriedade. Foi assim que a classe média sustentou a mesma privatização do ensino e da segurança que hoje amedronta movimentos como o Reage São Paulo. Quando se exigem, novamente, atos repressivos e armas nas mãos do governo, é preciso retornar ao passado. Atenuaremos desse modo a violência?
Aos indivíduos pode ser permitida a desrazão, nunca ao Estado. Nesse sentido, a política em defesa da lei e da Justiça, no Estado de São Paulo, merece apoio. Atos públicos repercutem na sociedade inteira, ajudando ou destruindo a segurança coletiva nas suas raízes e no seu futuro.
Contra a violência, suposta ou real, dos "inimigos" da "boa sociedade", as soluções devem ser buscadas na democracia, nunca no abuso das armas. A força é ilusória. Ela torna a violência mais cruel, ao substituir o Estado de Direito por lideranças guerreiras que arruinam a inteligência coletiva. Sem democracia, renasce o mundo onde o homem é lobo do homem. Situação permanente de nossa terra.

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