São Paulo, domingo, 24 de novembro de 1996
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A melancolia dos catastrofistas

ANTONIO NEGRI
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE PARIS

Era inevitável que se começasse a falar de crise, e que os próprios ideólogos -que tanto se empenharam para nos mostrar as "maravilhas" dos meios eletrônicos de comunicação- se tornassem melancólicos! Não é muito difícil, de fato, ao refletir sobre esta experiência e ao considerar os efeitos da revolução informática, nos encontrarmos diante de gigantescas contradições.
Tomemos a experiência de viajar pela Internet. E-mail é cômodo. Mas, quanto ao resto, quanto tempo e quanto dinheiro desperdiçados! E, se para o dinheiro -observando-se os usuários atuais- frequentemente há empresas ou instituições pagando, o tempo e o tédio continuam impagáveis. E ademais há a banalização, ou pior, o aviltamento das linguagens. Isto se torna cada vez mais insuportável -como se a velocidade da informação lhe tirasse a profundidade e pervertesse o seu sentido.
Estas são, porém, as reflexões de um privilegiado que pode, de qualquer modo, optar por experimentar, ou não, o dispositivo de comunicação informática. Quando consideramos os efeitos da revolução informática sobre aquela massa de pessoas que não podem optar pelas utilidades amenas do meio, mas vê-se obrigada a trabalhar com isso, a amargura é, de certo modo, inevitável. Dizia-se de fato, e esperava-se, que a informatização tivesse desarraigado da produção o taylorismo: mas, ai de mim, ela parece, ao contrário, estar tornando tayloristas aqueles serviços que ainda não o eram.
Decerto a informatização reunifica os poderes do trabalho e portanto incrementa enormemente a sua produtividade -mas não parece produzir aquela expansão ocupacional da virtualidade produtiva que outros setores merceológicos, em outras épocas hegemônicas (o têxtil, o mecânico), tiveram: a informatização de fato não aumenta o número de empregos, ao contrário, os diminui, drasticamente. E, já que vivemos numa sociedade capitalista, por sorte ou por azar (os pontos de vista são contraditórios), quem não trabalha não come.
Hoje alguns começam a suspeitar que a informatização tenha algo a ver com o crescente desemprego de nossas sociedades e que também tenha a ver com o fato que, paradoxalmente, quanto mais a produtividade aumenta, tanto menos as pessoas trabalham.
Dizendo isso em termos menos delicados: quanto mais a riqueza aumenta, tanto mais aumenta a pobreza. Quando leio Paul Virilio e percebo o crescente pessimismo com que ele vê o desenvolvimento daquelas tecnologias de que foi profeta e apologista, não posso abrir mão das considerações que eu fazia havia pouco -e creio que estas lhe dizem respeito, exatamente como dizem respeito a uma série de autores que (mesmo tendo estado implicados no processo de formação da cultura informática) consideram hoje, com crítica crescente, o seu desenvolvimento (de Derrida a Bernard Stiegler e a Pierre Levy, para falar somente dos franceses).
Mas o problema é mais complexo: isto é, não diz respeito só à responsabilidade científica em relação aos efeitos da informatização, mas sim, acima de tudo, à própria natureza da transformação que a informática (anexos e conexos inclusive) determina.
Ora, Paul Virilio por exemplo, foi um dos observadores mais atentos desta transformação. Mostrou suas consequências epistemológicas (as modificações do imaginário cognoscitivo), comunicacionais (a nova eficácia da circulação dos signos e dos sentidos linguísticos), ontológicas (a dissipação progressiva do real na aceleração comunicativa) e... (por que não? Virilio é um crente, e não esconde isso) teológicas (a necessidade de uma garantia transcendental diante daquela dissipação).
Virilio teme, portanto, não somente os efeitos sociais da transformação (que lhe parecem fora de controle), bem como os seus efeitos antropológicos. Estes últimos são os que, preponderantemente, hoje ele descreve em termos catastróficos. É aceitável, ou, até que ponto é aceitável o seu grito de dor? Lembro-me de uma discussão, há alguns anos, sobre estes mesmos temas, entre Félix Guattari e Paul Virilio. Félix atacava Virilio não sobre o conteúdo de sua análise (que compartilhava), mas sobre a linearidade de suas conclusões catastróficas. Dizia que, se a informática continuar produzindo as consequências que conhecemos, só nos resta implorar perdão divino. É possível, mas não necessário. A virtualidade do meio (este era o argumento comum entre Félix e eu) não pode ser encerrada em um determinismo negativo.
E quando, na história do homem, o instrumento de trabalho foi mais virtual do que aquele constituído pelo meio informático? A informática permite muitas utilizações, as mais diversas possibilidades -de qualquer modo muitas a mais do que permitiam a foice e o martelo, que eram ferramentas ineficazes se, no lugar de utilizá-las para construir a riqueza alheia, tivesse se tencionado utilizá-las para destruir a expropriação. A informática põe a inteligência para trabalhar e, ao contrário do que aconteceu na história do capitalismo, opõe ao processo de progressiva apropriação do instrumento de trabalho por parte do capital, a reapropriação do mesmo instrumento por parte do trabalhador.
Então, ao contrário do que Virilio nos promete, os horizontes de vida promovidos pela nova tecnologia serão esplêndidos? Nada disso. Estamos simplesmente dentro de uma transformação tecnológica que abre novas possibilidades: quer de um desenvolvimento da informática no sentido de uma nova e mais poderosa barbárie, quer de uma nova tomada de consciência da resistência e da possibilidade de retomarmos nas mãos da multidão o desenho do futuro. Nenhum catastrofismo, portanto. Mas um empenho de luta, conscientes de que a transformação informática oferece à inteligência novos meios de revolução.

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