São Paulo, segunda-feira, 2 de dezembro de 1996
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A dura ressurreição de Bonfim

LUÍS NASSIF

É curiosa a sina de Manoel Bonfim -intelectual sergipano morto em 1930. Após sua morte, foi praticamente abolido do mundo da "inteligência" oficial. A sina continua, 66 anos depois.
No comentário sobre seu livro "O Brasil Nação" (Topbooks) -no Mais! de ontem-, o respeitado historiador Boris Fausto recorre a enormes ginásticas para achar lugar para Bonfim na estante dos arquétipos ideológicos.
Bonfim seria um nacionalista, por denunciar a contratação de empréstimos externos a juros escorchantes para financiar o café. Ou por denunciar a espoliação de empresas estrangeiras, "sugadoras" de nossos recursos.
Seria de esquerda, por defender a ruptura da ordem vigente. Lembraria Lênin, por sugerir que as transformações sejam conduzidas por uma minoria esclarecida.
No prefácio do livro de Bonfim, outro intelectual, Wilson Martins, resume toda a sua obra ao que ele (Martins) considera uma incongruência e um equívoco.
A incongruência: ter batido sem dó nos Bragança e, com a República, ter constatado que os que vieram depois eram piores. Como se, surgindo um pior, o ruim se tornasse bom. O equívoco: ter tratado a Revolução de 30 como mais uma conspirata, sem maiores desdobramentos.
Para os que estão discutindo e consolidando o novo desenho do país, a obra de Bonfim é um farol luminoso. Ele conseguiu vislumbrar no início do século, em plena efervescência da Proclamação da República, vícios e arquétipos que se repetiriam com extraordinária similitude na Nova República.
Em plena Revolução de 30, com os ideais revolucionários criando uma utopia que varria o país, Bonfim conseguiu captar na essência -e em cima da bucha- todos os vícios do corporativismo centralista que só agora, décadas depois, o país consegue identificar claramente e combater.
Como Martins pretendia que reconhecesse as virtudes da Revolução de 30 se o modelo de país que Bonfim preconizava -hoje vitorioso- em tudo conflitava com o corporativismo entranhado trazido pelos aliancistas?
Bonfim não apenas entendeu a natureza da Revolução de 30 como antecipou, com extraordinária acuidade, todos os desdobramentos e vícios que só agora resultam claros para o país.
Longe de Bonfim o nacionalismo estreito, que dizia que o que era bom para a empresa nacional era bom para o Brasil. Bonfim era contra empréstimos externos escorchantes por serem escorchantes, não por serem estrangeiros. Era contra a espoliação por ser espoliação, não por vir de fora.
O que criticava era o governo tomar empréstimos a juros pesadíssimos para acudir uma elite cafeeira atrasada e acomodada.
O modelo de país preconizado por Bonfim supunha o governo agindo para criar um ambiente econômico favorável, competitivo, com igualdade de oportunidades para todos os empreendedores, mas sem distribuir favores -justamente o que se busca hoje.
Defendia vigorosamente o papel não só do Estado, mas da nação, no combate à miséria e ao analfabetismo. Ao Estado caberia regular, mas a operação precisava provir do seio da sociedade.
O modelo de sociedade que perseguia era a americana do fim do século passado, com empresas se desenvolvendo sem precisar contar com o Estado e ajudando a financiar projetos educacionais.
Era um defensor radical do federalismo e de toda forma de controle da nação sobre o Estado -algo que só agora começa a ser aceito por parte da esquerda.
A visão de "esquerda" de Bonfim vem de sua descrença de que a anacrônica elite brasileira pudesse mudar a partir de propostas modernizantes. A partir daí, sugere a ruptura, mas longe do modelo de Estado preconizado pelas esquerdas no decorrer do século.
A rigor, seu grande equívoco foi ter se colocado contra a imigração antes que os princípios da nacionalidade estivessem consolidados. Temia que pudessem ser criados guetos raciais, que comprometessem a unidade nacional.
No fundo, não acreditou no que, em todos os seus escritos, enaltecia de forma extraordinária: a alma brasileira, a generosidade do povo, que contrapunha à crueldade sem limites da elite.
No fundo, foi essa alma brasileira, tão decantada por Bonfim, que permitiu que os imigrantes viessem, ajudassem a transformar o país e assimilassem a identidade nacional.

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