São Paulo, sexta-feira, 13 de dezembro de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Quem não pega ônibus não sabe nada da vida

CARLOS HEITOR CONY
DO CONSELHO EDITORIAL

Por mais que procure saber nas folhas e na TV como anda a vida, sempre há uma defasagem entre o conhecimento e a realidade. Pela própria natureza, que segundo o nosso hino fez do Brasil um gigante, a mídia é seletiva e parcial, como a memória individual também o é.
Há muitos anos não ando de ônibus. Com frequência quase rotineira, uma viagem nesses coletivos passou a equivaler ao tempo das diligências que rendeu um clássico de John Ford. E uma série de subprodutos com o mesmo cenário e a mesma história.
O Luís Edgar de Andrade também passou a evitar os ônibus até a fatídica tarde de sexta-feira passada. Tinha encontro com um amigo motorizado e decidiu deixar o carro em casa -o amigo o levaria de volta. Tomou um ônibus no Jardim Botânico em direção ao Flamengo.
No largo do Humaitá, o primeiro sobressalto: um rapaz magrinho, desnutrido, de short amarelo e blusa esfiapada entrou no chamado "coletivo", puxou de uma pequena e esmolambada mochila não uma arma, mas uma caixa com chicletes.
Tomou posição no centro do carro e, com a anuência do motorista e dos demais passageiros, que ainda eram poucos àquela hora da tarde, começou a anunciar sua mercadoria. Sem muita vocação para camelô, mesmo assim foi entendido pelo Luís Edgar.
Os chicletes seriam uma novidade no mercado, eram mentolados, excelentes para curar rouquidões e dores de garganta, além de infalíveis no combate aos resfriados. As boas casas do ramo só receberiam a novidade no próximo ano, ele oferecia aos senhores passageiros, a preço simbólico, o maior estouro mercadológico dos últimos tempos.
Aliviado pelo fato de o assalto ser reduzido a tão gentil oferta, Luís Edgar de Andrade comprou dois chicletes e ganhou um de cortesia. Três outros passageiros fizeram o mesmo, o ônibus atingia a praia de Botafogo e o rapaz saltou com sua féria.
Mas logo no ponto seguinte entrou um homem de seus 40 anos, cara de desempregado em desespero de causa, que tomou o mesmo lugar no centro do carro e arengou aos mesmos senhores passageiros. Não vendia chicletes, mas cortadores de unha. Preço no mercado: R$ 1. Preço de ocasião que ele oferecia: R$ 0,50.
Mais uma vez aliviado por não ter sido assaltado, Luís Edgar comprou dois cortadores de unha -o homem não tinha troco e nenhum outro passageiro se habilitou à pechincha oferecida.
O ônibus chegava ao morro da Viúva, o homem saltou e um outro subiu, com um pequeno tabuleiro de mariolas "vindas diretamente de Campos". Esse teve mais sucesso, o próprio Luís Edgar de Andrade, voraz apreciador de mariolas, comprou cinco. Quando o ônibus atingia a praça Paris o homem avisou: "Acabou, mas amanhã tem mais".
Logo depois Luís Edgar saltou. Sentia-se aliviado e rico. Não estava rouco nem resfriado, não usava cortadores de unha, mas tesourinhas comuns. E levava nos bolsos dois pacotes de chicletes mentolados -ele detesta chicletes e qualquer coisa parecida com eles.
Os cortadores de unhas até poderiam ser úteis, seriam dados a quem deles tivesse precisão. Mas o lucro maior estava nas mariolas. De Campos ou não, eram excelentes.
Desde a juventude ele se obrigou a comer, todas as tardes, duas enormes bananas, ricas em potássio e sais minerais. Isso o obrigava a andar com uma pequena sacola de plástico, levando ditas bananas para onde fosse, cinema, trabalho, compras.
Nunca lhe passara pela cabeça que as mariolas, afinal, são bananas compactadas, fáceis de transportar e de comprar, bastaria tomar todos os dias o mesmo ônibus.
Só depois de ter feito o balanço econômico, ele tentou a análise sociológica de sua acidentada viagem. Ouvira falar em economia informal, em desemprego, mas não podia imaginar que a coisa chegara a grau tão sofisticado de operação.
Com a massa dos sem-emprego ocupando ônibus, trens e barcas, surgiria talvez uma solução para os assaltos cometidos nos coletivos. Expulsos das ruas, expulsos do mercado de trabalho, esses vendedores de utilidades colaborariam com o governo no barateamento do custo de vida e, de sobra, ajudariam a polícia no combate ao crime. Com a vantagem de, eventualmente, ajudar um senhor passageiro a repor sua taxa diária de potássio e sais minerais.
Cito de memória: Balzac dizia que quem não passasse pela rue des Saints-Pères, entre cinco e seis horas da tarde, não conheceria a condição humana. Quem não pega o ônibus no Jardim Botânico em direção ao Flamengo não sabe nada da vida.

Texto Anterior: Zé Celso apresenta 'Bacantes' para artistas e políticos
Próximo Texto: Conservadora aprova restauração de Warhol
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.