São Paulo, sexta-feira, 13 de dezembro de 1996
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Venda da Vale: ausência de estratégia

LUIZ GUSHIKEN; ADRIANO DIOGO

A venda da Vale só está sendo possível de ser articulada porque o povo não tem dimensão da nacionalidade
LUIZ GUSHIKEN
e ADRIANO DIOGO
O antropólogo Roberto DaMatta, um dos grandes pensadores da sociedade brasileira, diz que somos um país de pessoas que têm dois tipos de ética: a da rua e a de casa.
A rua, espaço público e coletivo, é perniciosa, onde a convivência com os outros é desconfiada -tudo é "sujo". Já a casa, o lar, é o espaço onde as coisas são "limpas", onde a convivência é realmente fraterna e onde, principalmente, somos verdadeiramente cidadãos possuidores de direitos. A casa é o único espaço onde o brasileiro tem os seus direitos reconhecidos.
Em vista do desrespeito à cidadania no espaço coletivo, somos o país do jeitinho, do "sabe com quem está falando?" e da forte e monolítica hierarquia social. Mais: somos um país que não tem um sentido claro de nacionalidade, um modelo definido da sociedade que queremos.
Fazemos esse intróito para dizer que a pretendida venda da Vale do Rio Doce só está sendo possível de ser articulada porque o povo brasileiro não tem a dimensão clara da própria nacionalidade e, por isso, não consegue organizar-se coletivamente -a não ser em reivindicações corporativas.
Se tivéssemos, se fôssemos um povo que pensasse a vida em sua dimensão coletiva também, não deixaríamos vender essa empresa como estão querendo fazer, pois teríamos que refletir necessariamente sobre um projeto próprio, sobre uma estratégia própria para o país.
Estamos vendendo uma das maiores empresa mineradoras do mundo, com concessões para exploração em subsolo de valores inestimáveis, com o escopo declarado de abater a dívida pública. Essa é a melhor alternativa para o Brasil?
É importante esse questionamento não só no mérito, mas para desmistificar o discurso dominante de que este é o único caminho para atingir o crescimento econômico, desejado por todos. Não é o único caminho, e isso precisa ficar bem claro.
Vender a Vale -e os recursos minerais decorrentes das concessões que possui, acrescidos do seu potencial de geradora de desenvolvimento nas regiões em que atua- representa abrir mão da dignidade nas relações comerciais com os outros países e da busca de estratégias de sobrevivência e competição a longo prazo, no mundo globalizado do próximo século, no qual os recursos naturais serão escassos.
Os atuais governantes estão querendo queimar um dos maiores ativos da União para abater menos de 10% do nosso déficit público. Nenhum país responsável faria uma coisa dessas.
O ponto crucial nessa questão é: a Vale é uma empresa estratégica para o país? É preciso mesmo vendê-la? Ou ainda: qual é a melhor estratégia para o país?
A Vale do Rio Doce é uma das mais importantes empresas mineradoras do mundo. Tem um patrimônio líquido de R$ 10,52 bilhões e é uma empresa altamente lucrativa -R$ 329 milhões em 1995. A Vale detém o controle de 40 empresas, inclusive no exterior, e tem um faturamento de mais de US$ 2 bilhões por ano. Ela produz 14 toneladas de ouro por ano, sendo a maior produtora de ouro da América Latina. Como se não bastasse, a Vale é a maior produtora e exportadora de minério de ferro do globo. Suas reservas têm uma duração estimada de 540 anos.
Além desse potencial todo na área mineral, a Vale é dona da estrada de ferro Vitória-Minas, com 918 km de extensão, e da estrada de ferro Carajás, com 890 km de extensão. É dona também do porto de Tubarão, em Vitória (ES), e do porto de Ponta da Madeira, em São Luís (MA).
Tem uma frota de 21 navios de grande porte. Detém participação acionária na Usiminas, na Companhia Siderúrgica de Tubarão e na Companhia Siderúrgica de Volta Redonda. Fora isso, ainda tem empresas de celulose, a Cenibra e a Bahia Sul, que produzem mais de mil toneladas de celulose por ano, e empresas que administram áreas de florestas nativas no Amazonas, em Minas Gerais e no Espírito Santo.
A legitimidade para levar a cabo a venda da Vale é discutível, uma vez que a privatização dessa empresa não fez parte das propostas de campanha do então candidato Fernando Henrique Cardoso. Ele não foi eleito para isso. E o patrimônio a ser alienado não lhe pertence.
Se a proposta de alienação da Vale passasse pelo Congresso -ou por um plebiscito-, se fosse estudada, discutida e votada, com acompanhamento da sociedade, com transparência e correção, aí sim, o grupo que está no poder teria legitimidade, ou melhor, estaria autorizado a levar adiante essa empreitada.
Outro ponto: o processo escolhido para essa venda é extremamente discutível. Isso porque os futuros adquirentes, com toda certeza, vão desmanchar a empresa. A Vale possui atividades sinergéticas, isto é, atividades que se complementam. Ela extrai minérios, transporta-os e depois os exporta. Tudo com frota e recursos próprios. Sem falar nas outras atividades da empresa, como a celulose e a participação em siderúrgicas, inclusive no exterior, por meio de joint ventures.
Por isso, há um receio, fundado, de que os futuros controladores, se prevalecer esse modelo de privatização, irão retalhar a Vale, vendendo as partes com evidente lucro. Isto se, simplesmente, não desativarem determinados setores da empresa, em benefício dos concorrentes.
Por isso tudo, opor-se a essa venda, ou melhor, a essa entrega, é lutar para termos o controle do nosso subsolo, daquilo com que a natureza nos privilegiou como a nenhum outro país, e sobre o qual recaem -obviamente- interesses muito poderosos.

Luiz Gushiken, 46, é deputado federal pelo PT de São Paulo e membro do Fórum Permanente de Deputados em Defesa da Vale do Rio Doce.

Adriano Diogo, 47, geólogo, é vereador pelo PT em São Paulo.

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