São Paulo, sábado, 14 de dezembro de 1996
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Retrato completo de Gilberto Freyre faz falta

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Será que estamos, pelo menos em termos de literatura, resolvidos a não mais esquecer o passado recente? Remédio encontrado: biografias de classe.
"Chatô", de Fernando Morais, "O Anjo Pornográfico" e, graças a Deus de novo à venda, "A Estrela Solitária", de Ruy Castro, "Ary Barroso", de Sérgio Cabral, o livro sobre Vinicius, de José Castelo. No momento, a vida de Henfil, escrita por Dênis de Moraes, que já nos deu um livro sobre Graciliano Ramos.
Reparem que de início falei logo em passado recente. Bastaria, para nos fazer pensar em grandes estudos biográficos do passado, a iniciativa que teve este ano a Topbooks de pôr de novo em circulação o "D. João 6º no Brasil", livro escrito em 1908 por Oliveira Lima e que teve segunda edição em 1945.
Não escrevi sobre o excelente livro de Oliveira Lima porque praticamente todos os suplementos literários se encarregaram da tarefa.
Uma coisa, porém, poucos notaram. Pelo menos não me lembro de qualquer menção ao desenho que a nova edição exibia em sua contracapa.
Trata-se de uma cena de rua. Um velho gordão, de enormes bigodes, vestindo toga, borla e capelo vai andando pela rua como um transatlântico em doca seca. É acompanhado e como que examinado por um jovem pelintra de chapéu de feltro, magrelo, meio assombrado com tal gigante que singra as ruas.
O autor do desenho é Gilberto Freyre, que se retrata como o jovem janota a contemplar a passagem do velho Oliveira Lima, autor de sua grande admiração. Fiquei olhando e olhando a caricatura, a mim mesmo perguntando: até desenhar o Gilberto desenhava bem assim, com essa graça de caricaturista?
Nesse ponto, vagamente lembrei de um Gilberto Freyre que se dizia pintor. Acho que possuo os livros básicos de Gilberto, mas apelei, para avivar a memória, para meu amigo gilbertiano Alberto Venancio Filho.
Venancio me muniu de material suficiente para compor uma verdadeira biografia de Gilberto. E, como verão adiante, esse material me entristeceu, pois concluí que, contra as aparências, a obra de Gilberto Freyre ainda é pouco conhecida entre nós.
Mas vamos, antes, ao Gilberto pintor. No livro "Novas Conferências em Busca de Leitores", que reúne trabalhos de Gilberto organizados e prefaciados por Edson Nery da Fonseca, Gilberto, a convite do Senado Federal, está fazendo uma conferência sobre "A Atuação do Parlamento no Império e na República".
Logo de início, meio sério meio anedótico, ele conta como, numa galeria paulistana, expôs 40 quadros de sua autoria, "e tive a grande alegria de ver, em menos de duas horas e meia, todos os 40 quadros serem adquiridos. O que me levou a pensar, dado o resultado, que quadros são muito mais bem adquiridos do que livros".
Numa deliciosa palestra, um bem-humorado Gilberto lembra não só suas glórias de artista plástico como sua popularidade com "hippies", tanto em São Paulo como em Harvard, e alega que "já tenho uma reputação bem estabelecida de não ser modesto".
Apesar de sua saudável e explicável imodéstia (Gilberto só seria comparável, em termos de literatura histórica brasileira, a Euclides da Cunha), ele não teve até agora a devida atenção.
Existe uma montanha de estudos sobre "Casa-Grande e Senzala", sem dúvida, mas nada, que eu saiba, à altura de sua continuação: quem se ocupou, a fundo, da obra-prima que é "Ordem e Progresso"?
Ano que vem assinala o décimo aniversário da morte de Gilberto Freyre (18 de julho de 1987), e faço aqui meu apelo aos especialistas para que lhe escrevam a biografia completa, aprofundada. E que sobretudo vão além de "Casa-Grande" e mergulhem nesse esplêndido mar desconhecido que é "Ordem e Progresso", de nada menos que 962 páginas.
O plano geral que Gilberto Freyre expõe do que seria sua completa (e proustiana) história do Brasil está impresso na primeira página de seu ignorado "Ordem e Progresso", 1959, José Olympio Editora.
Sua régia promessa, em grande parte cumprida, é a de nos fazer a "História da Sociedade Patriarcal no Brasil", com os seguintes livros na seguinte ordem: 1) "Casa-Grande e Senzala", 2) "Sobrados e Mocambos", 3)"Ordem e Progresso", que cuida da "desintegração das sociedades patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o regime de trabalho livre".
Além disso ele prometia coroar essa obra com "Jazigos e Covas Rasas", sepultamento e comemoração dos mortos no Brasil patriarcal e semipatriarcal.
Esse "Jazigos e Covas Rasas" não chegou a se consubstanciar em livro, ai de nós. A julgar pela brilhante e exaustiva técnica que Gilberto Freyre empregou para compor "Ordem e Progresso", o dos mausoléus e túmulos populares sem dúvida nos revelaria também, de forma clara mas sofisticada, até o que os brasileiros têm feito com seus ossos.
"Ordem e Progresso" não deve ter sido escrito na calma e no sóbrio luxo de Apipucos, a mesa em perfeita ordem, um gole do caseiro licor de pitanga à hora do almoço.
A mesa mais terá parecido a de um escritório do IBGE, porque Gilberto escrevia, ele próprio, a pessoas (famosas e às vezes até meio infames) que haviam vivido e observado a Proclamação da República. Ele queria relatos, informações, de conselheiros, mas das chamadas mulheres da vida também.
O autor se disfarçou em confessor, ou em benigno visitador do Santo Ofício. Abro aspas: "Estas novas confissões só nos foi possível ouvi-las num esforço aparentemente fácil, na verdade dificílimo, de bisbilhotice disfarçada em investigação sociológica".
Gilberto agradece, especialmente, Doninha de Sigismundo, "pecadora arrependida que, velha e vestida de preto, contou-nos há anos, durante meses a fio, intimidades da vida sexual de ilustres homens de governo do fim da Monarquia e do começo da República, suas informações confirmando as que com muita dificuldade recolhera sobre assuntos afins de eminente baronesa do Império".
Nem todo mundo entrou no jogo de Gilberto, como, digamos, Vargas e Monteiro Lobato. Aspas: "Getúlio Vargas, solicitado por nós, em 1940, em Petrópolis, a responder ao nosso inquérito, observou maliciosamente, depois de o ler, a princípio com um meio-sorriso, de certa altura em diante sério e concentrado: 'Este inquérito descobre qualquer um. Eu não sou homem que se descubra, mas que deve ser descoberto'.".
Lobato respondeu amável e explicativo, mas também negativo. Achava que todos os que respondessem iriam "mentir a respeito de si próprios de um modo verossímil".
Mas paro por aqui, sob pena de me afogar e afogar o leitor nesse rio mágico e ignorado que é "Ordem e Progresso". Bem sei que dona Madalena, viúva de Gilberto, cuida douta e amorosamente da lembrança e do espólio intelectual que ele nos deixou, e menos não faz seu filho Fernando Alfredo.
Mas a ambos peço a biografia que está faltando. E que não se detenha e se satisfaça com "Casa-Grande", como se bastasse, a um leitor de Proust, o primeiro volume de "Em Busca do Tempo Perdido".

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