São Paulo, quinta-feira, 26 de dezembro de 1996
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Chopin chega a seu "ponto de perfeição"

ARTHUR NESTROVSKI
ESPECIAL PARA A FOLHA

Os gregos falavam em "kairos". E os filósofos franceses, no século 18, traduziram "kairos" por "ponto da perfeição". É um fenômeno até comum: uma obra ou autor que só encontra seu tempo em outro tempo, década, século.
Como as sinfonias de Mahler, por exemplo, escritas entre 1890 e 1910, mas cujo apogeu de crítica e público só se deu na década de 1970. Ou o "Cravo Bem Temperado" de Bach, que não teve influência direta sobre a música do século 18, mas foi central na primeira metade do 19. Ou como Chopin, cujo "kairos" parece chegar agora.
A figura de Chopin (1810-1849) foi sempre popular, o compositor-poeta romântico por excelência, exilado na Polônia por convicção política, musical e sexualmente andrógino, vivendo um idílio amoroso com a não menos andrógina Georges Sand; finalmente tuberculoso, cuspindo sangue sobre o teclado em salões de Paris e maus filmes de Hollywood.
Sua música foi igualmente popular, o que revelou-se mais uma praga do que uma bênção, dado o desvirtuamento dessa obra nas mãos de virtuoses ou debutantes.
Sua música, tão cheia de ambivalências e duplos sentidos, capaz também de reciclar idiossincraticamente as mais variadas formas e funções, parece feita sob medida para nossos ouvidos.
E a tonalidade afetiva dos Noturnos, dos Prelúdios, dos Scherzos, das Baladas, dos Estudos, das Mazurcas -esse equilíbrio instável entre melancolia e contentamento, sua sedutora opacidade, que não se resolve em adjetivo nenhum- soa mais contemporânea do que a da música de nossos contemporâneos, cujo ponto de perfeição certamente não é hoje.
Nada disto teria muito impacto sem a realização sonora dessas idéias nas mãos de pianistas como Evgeny Kissin, Ivo Pogorelich ou Kristian Zimmermann, levando adiante uma tradição que inclui virtualmente todos os maiores pianistas do século (exceto Alfred Brendel!). E é neste contexto que surge essa integral dos "Noturnos de Chopin", por Maria João Pires.
Perto dos 50 anos, Maria João Pires é uma das maiores pianistas vivas e sem dúvida o nome musical de maior expressão do seu país (e do nosso, por tabela).
Nos últimos anos, vem gravando um disco melhor do que o outro, num estilo caracteristicamente modesto, lúcido, ao mesmo tempo delicado e vigoroso, a favor da música. É uma pianista tocantemente honesta, sem efeitos. É transparente e ao mesmo tempo cheia de substância, como sua vida na fazenda, nos arredores de Lisboa.
Em parceria com o regente Claudio Abbado, ela gravou dois discos com Concertos de Mozart (14 e 16; 17 e 21); o segundo, por consenso, um dos melhores Mozart de todos os tempos. Em 94, lançou um CD com as "Cenas do Bosque" e o "Carnaval de Viena" de Schumann. No ano passado, foi a vez de Bach (sempre pela gravadora Deutsche Grammophon).
Além desses, há os discos de música de câmara, que incluem um recital de canções de Mozart com Barbara Hendricks (EMI) e dois discos de sonatas para violino e piano, com Augustin Dumay, mais trios de Brahms. E há, ainda, pela Deutsche, uma gravação do segundo Concerto para piano e orquestra de Chopin, regido por André Previn, e acompanhado da integral dos Prelúdios.
Em retrospecto, o clímax dessa sequência chegou agora com os Noturnos. Só é possível comparar a gravação de Maria João Pires com a legendária interpretação de Artur Rubinstein. Existem, é claro, interpretações tão ou mais impressionantes de uma ou outra peça. Horowitz, por exemplo, gravou alguns Noturnos literalmente como ninguém, porque só ele escutava essa música com esses acentos e nervos. Mas a coleção inteira chega a um ponto de perfeição com a integral de Maria João Pires.
Um Noturno, no século 19, era uma composição para coro de câmara, música vocal de salão. Chopin parte deste modelo, aproxima-o das árias italianas de Bellini e dos Noturnos de John Field, e o transforma numa outra coisa, música noturna mesmo, composições híbridas, onde a linha da "voz" sofre uma metamorfose instrumental e se combina com o efeito de contraponto bachiano.
Tudo é interiorizado e o Noturno vocal só aparece como lembrança, entrevisto no caleidoscópio de harmonias, nos ritmos cuidadosamente irregulares, no virtuosismo inesperado de ornamentos e no jogo de antecipações e sugestões e desenvolvimentos temáticos que fazem desta música linguagem para além do princípio da razão.
"Chopin propõe, supõe, insinua, seduz, persuade: jamais afirma nada", escreveu André Gide, nas suas "Notas sobre Chopin" (1942). É este pensamento reticente da música que tanto nos atrai e que Maria João Pires traduz espantosamente bem, em tons de nostalgia no fim da linha dos afetos.
Cada Noturno soa legítimo e autônomo e ao mesmo tempo como parte do grande livro de Noturnos. A gravação, infelizmente, cria um efeito de piano no palco, como se cada um de nós estivesse escutando um ensaio, no teatro vazio. Os Noturnos de Pires são espaçosos, até exuberantes, mas esse é um espaço interiorizado como a própria música e ficaria melhor menor.
Redescoberto, ou reinventado, Chopin, para nós hoje, é uma qualidade particular da vida, um adjetivo do mundo. E Maria João Pires, a partir de agora, passa a ser uma qualidade particular de Chopin. Nosso Chopin está mais vivo do que nunca; mais vivo, perpetuamente, do que cada um de nós, quando não estamos reinventando -ou escutando- Chopin.

Disco: "Noturnos de Chopin" de Maria João Pires (2 CDs)
Lançamento: Deutsche Grammophon

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