São Paulo, segunda-feira, 12 de fevereiro de 1996
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Todos os seus joelhos

JOSUÉ MACHADO

"A jogadora enfrentou um sério problema nos ligamentos de seu joelho esquerdo e depois teve problema semelhante em seu joelho direito."
Seu joelho esquerdo e seu joelho direito. Foi o que publicou um jornal. O uso de possessivos com partes do corpo é muitíssimo comum e constitui tolice galicística das maiores. Por que de "seu" joelho esquerdo? Por que em "seu" joelho direito? Sem falar no excesso que já é o indefinido "um" de "um sério problema", por que usar possessivos com partes do corpo?
A oração cheia de joelhos não é das mais elegantes, mas convém lembrar que a moçada precisa escrever depressa e não tem tempo de polir a obra que, nesse caso, seria prima. Então, sem modificar sua estrutura, ela ficaria assim, despojada dos penduricalhos gauleses:
"A jogadora enfrentou sério problema nos ligamentos do joelho esquerdo e, depois, teve problema semelhante no joelho direito."
O redator poderia enxugar um pouco mais o textículo:
"A jogadora feriu-se nos ligamentos do joelho esquerdo e, depois, do joelho direito."
A donzela ferida poderia ter problemas nos joelhos da adversária? Talvez pudesse, se fosse como um daqueles gêmeos univitelinos especiais, os irmãos corsos do Alexandre Dumas: um dava uma canelada aqui, o outro gemia acolá; um amava aqui, o outro se esvaía alhures; um perdia o emprego aqui, o outro chorava em Pindamonhangaba. Aí, sim, um deles poderia dizer, para ser bem claro:
"Quando ele machucou o joelho, eu senti muita dor no meu." Ou:
"Eu tive problemas no joelho esquerdo dele e senti uma dor do tamanho do buraco desses bancos bem-administrados."
Coisas como "cortar os 'meus' cabelos", "pintar as 'minhas' unhas", "machuquei a 'minha' perna esquerda" são classificadas de superabundâncias sobejantes alienígenas. Especialidade daqueles estimados coronéis da política.
Claro que em certos casos o possessivo se encaixará com utilidade:
"Meu joelho esquerdo está doendo."
"Meu coração está cheio de tristeza."
Para aqueles que têm a mulher como parte de si mesmos: "Minha amada me dói muito."
Para resumir e deixar claro como quase é o fundo de salvação bancária: partes do corpo rejeitam o possessivo em nossa querida língua. Sem tentar fazer graça, não fica bem dizer como o Woody Allen, que tenta e consegue fazê-la:
"Vou escoar todos os meus dentes."
Troca de recheios
As revistas e jornais andaram anunciando que a princesa Diane apareceu "de topless". Reproduziram fotos dela com os seios à mostra, publicadas pela revista italiana "Oggi", e disseram que ela estava "de topless". Por que "de topless"?
"Topless", palavra composta inglesa, significa "sem a parte superior". Então a princesinha mal-amada em palácio e bem-amada fora dele apareceu "de sem a parte superior"? Só "de sem a parte de cima"? Seria a parte perdida da mulher-tronco? Quem ficou com a parte de cima?
Com um pouco mais de boa-vontade, entende-se que ela estava "de sem a parte superior" do maiô, "de sem a parte de cima do biquíni". Afinal, as fotos mostram isso.
Com mais boa-vontade ainda, desculpa-se a distração "de" junto de uma palavra de outra língua que dá idéia de privação: "de" sem algo. Dirão que é bobagem ser tão literalmente apegado à letra, ao sentido literal da palavra. Sim, sim. Mas por que papagaiar e fazer confusão em outra língua, se há recursos nesta para dizer as coisas?
Por que não dizer no português desta terra abençoada por Deus com tão bons governantes e representantes do povo que a princesoca apareceu com os seios de fora ou à mostra ou ao sol ou ao léu? Ou, por que não dizer modestamente que ela apareceu sem a parte superior do maiô ou do biquíni, expondo quase todo o rígido recheio que o bom príncipe-herdeiro trocou pelo da veterana e sábia Camillona?
Por que papagaiar, por todos os fleurys e quércias?

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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