São Paulo, quarta-feira, 14 de fevereiro de 1996
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Irã fracassou, afirma Salman Rushdie

SALMAN RUSHDIE

Sete anos após o Irã decidir matá-lo, autor de 'Os Versos Satânicos' diz que foi salvo pela solidariedade internacional
O livro que deveria ser apagado da história, é encontrado em 20 línguas
A recusa em levar esta longa crise mundial à conclusão só nos deixa céticos
Sete anos atrás o governo do Irã tomou a decisão de suprimir um romance e silenciar seu autor. Foram invocados conceitos religiosos medievais (heresia, apostasia, "sangue impuro"), mas os métodos de sua divulgação e proposta implementação -comunicações de massa mundiais, terrorismo internacional- podiam ser tudo, menos medievais. O ataque a "Os Versos Satânicos" foi sofisticado, original, implacável e contínuo. E ele fracassou.
O romance amaldiçoado, o livro que deveria ser apagado da história, pode ser encontrado em 20 línguas diferentes. Defendido com grande coragem e altos princípios por livreiros e editoras e por milhares de indivíduos e organizações que se uniram numa resoluta campanha para defendê-lo, "Os Versos Satânicos" sobreviveu para empreender a longa jornada de volta do mundo do escândalo para o mundo dos livros.
Já foi defendido, também, por centenas de intelectuais muçulmanos e por leitores muçulmanos em muitos países. Ouvi dizer que está sendo ensinado em Damasco. As vozes calmas daqueles que apreciaram essa obra de ficção estão tomando o lugar dos ruídos irados dos que a detestaram, muitas vezes (mas nem sempre) com base apenas em ouvir falar nela.
Quanto ao autor em questão, ele continua sendo publicado e continua divulgando suas idéias; portanto podemos concordar, pelo menos, em que ainda não foi silenciado.
Também venho procurando emergir da sombra à qual fui confinado por algum tempo. Continuar escrevendo e viver de maneira mais aberta é o meu modo de mostrar que não fui intimidado.
Alguns comentaristas me criticaram por me deixar ser visto em público. Que reflitam sobre a "mensagem" que seria transmitida se eu permanecesse invisível. Será que realmente queremos dizer ao mundo que as "fatwas (sentenças religiosas muçulmanas)" funcionam?
Nos últimos meses eu viajei a uma dúzia de países (sem qualquer ônus financeiro ao contribuinte britânico, permitam que observe), e tenho encontrado, entre leitores, livreiros e até mesmo jornalistas, um ambiente de celebração cautelosa. E temos o que celebrar, cautelosamente. A neutralização da ameaça, a frustração dos objetivos principais da "fatwa", não foram conseguidas pela intervenção de Estados ou estadistas. É algo que fizemos juntos: nós, os leitores, a franco-maçonaria internacional e informal dos amantes dos livros, com nossos apertos de mão secretos, nossas redes ocultas, nossas práticas misteriosas; com a força de nossa vontade obstinada, teimosa, suja de tinta, por trás de nossos óculos.
Considerando-se que os impotentes realizaram tanto, não é lamentável que os detentores do poder real tenham feito tão pouco? Pois a "fatwa" não foi cancelada; isso foi reafirmado recentemente por um enviado iraniano à Noruega. Os governantes do Irã continuam afirmando que nada podem fazer, nem em relação à sentença nem à obscena recompensa financeira oferecida a quem a implementar. Mesmo a exigência mínima feita pela União Européia -que o Irã assine um documento garantindo não implementar a "fatwa" e desistindo de incentivar outros a fazê-lo- foi rejeitada.
Esta última iniciativa européia começou um ano atrás, durante a presidência francesa da UE, quando me reuni com os senhores Chirac e Juppé em Paris. Naquelas reuniões, acordamos que a) o acordo não seria uma alternativa ao cancelamento da "fatwa", mas que seria visto como um passo nesse sentido; b) que se tal acordo fosse selado, seguir-se-ia um longo período probatório -possivelmente de dois anos- durante o qual o Irã seria monitorado; c) que o Irã não receberia qualquer recompensa por concordar, por assim dizer, em comportar-se de maneira normal, e d) que se o Irã se recusasse a assinar o acordo, assim negando-se efetivamente a renunciar à possibilidade de ações terroristas contra cidadãos da UE, haveria "consequências diplomáticas e econômicas".
Em junho de 1995, em Paris, depois de levar todos, incluindo a França, a acreditar que o acordo havia sido feito, o Irã recusou-se a assiná-lo.
Sob a presidência espanhola da UE, o assunto foi discutido sem resultados positivos em reuniões realizadas em Nova York e Madri. Uma proposta troca de cartas não deu em nada. A atual presidência italiana da UE declarou a "fatwa" "nula e sem efeito", mas é uma declaração unilateral. Quanto às "consequências diplomáticas e econômicas" ameaçadas, não há sinal delas -previsivelmente, talvez.
É verdade que os iranianos têm dito repetidas vezes que a questão da "fatwa" "acabou", "está resolvida", "é história antiga", é "letra morta". No domingo passado, um diplomata iraniano em Londres, cujo nome não foi citado, "falando em nome do governo Rafsanjani", teria me "garantido" que o Irã não vai enviar ninguém para me matar, e que eu posso, portanto, "retomar uma vida normal".
Nos últimos nove meses, declarações desse tipo já foram feitas pelo presidente Rafsanjani, pelo ministro das Relações Exteriores Velayati e pelo presidente do Majlis (e provável próximo presidente da República) Nateq-Nouri.
Não deixa de ser uma mudança bem-vinda de tom, convenhamos. Mas a recusa em levar esta longa crise mundial a uma conclusão formal, assinada e selada só pode nos deixar profundamente céticos quanto à credibilidade de quem a alardeia.
Em última análise, o ponto fundamental não é se eu posso ou não, finalmente, "retomar uma vida normal". É que o Estado do Irã, em uma sentença decretada por seu chefe de Estado e repetidas vezes endossada por toda sua liderança, embarcou num caminho de censura por meio de terrorismo de Estado, cujos alvos eram os povos livres de outras nações.
Foi um esforço grave e criminoso. Devemos nos lembrar de que a "fatwa" já foi implementada. O prof. Hitoshi Igarashi, tradutor japonês de "Os Versos Satânicos", foi assassinado. O tradutor italiano, dr. Ettore Capriolo, foi atacado, e William Nygaard, o editor norueguês do livro, foi alvejado. Felizmente ambos se recuperaram.
A UE assumiu o compromisso solene de resolver esse problema. Eu a exorto a fazê-lo, com urgência extrema. O que nós, como cidadãos, podíamos fazer para defender a liberdade e nos opor à intimidação, já fizemos. Depois de sete anos, chegou a hora de nossos líderes seguirem nosso exemplo.

Tradução de Clara Allain

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