São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 1996
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De caminhão, desde Miami

JOSUÉ MACHADO

Um simpático jornal desta praça publicou na primeira página foto de meia dúzia de carros amarrotados por caminhão governado como o Brasil em seus melhores dias, isto é, à deriva, ao deus-dará. Coisa do passado, claro. Sob a foto, a legendona:
"Carros batidos vistos desde caminhão que, desgovernado, provocou engavetamento de sete automóveis estacionados..."
Por que "desde" o caminhão?
Outro jornal contou que determinada empresa "já operava no Brasil desde Miami..."
"Desde" Miami?
A preposição "desde" não significa "de certo lugar" em português, como a usaram os redatores dessas notícias e como a usam alguns narradores esportivos que dizem:
"Estamos falando desde Buenos Aires..."
"Transmitimos desde Tandil, na Argentina..."
Esse é bom uso espanhol de "desde". Os padres Manuel Bernardes e Vieira a usaram assim há diversos anos, mas isso acabou. Dos escritores clássicos em diante, incluindo atualmente Chitãozinho e Chororó, a preposição "desde" perdeu o sentido espanholado e passou a significar apenas "a começar de" e "a partir de".
"Desde" indica, portanto, movimento no tempo e no espaço. Mais frequentemente no tempo do que no espaço; quando indica movimento no espaço em geral pode ser substituída por "de".
Movimento no tempo:
"Desde 1534 o povo espera que seus representantes e governantes melhorem."
"As mulheres querem igualdade desde que Eva fez aquela coisinha feia."
(Por que querem igualdade se são superiores?)
Movimento no espaço:
"Dormiu no carro desde a praia até a cidade."
"Amaram-se com fúria desde o Rio até São Paulo."
Os locutores recalcitrantes, leitores de Bernardes e Vieira, deveriam no caso esquecer esses autores e dizer:
"Estamos falando DE Buenos Aires..."
"Transmitimos DE Tandil, na Argentina..."
Assim também o redator da legenda escreveria bem que os carros estão sendo "vistos DO caminhão" e o outro que "DE Miami, a empresa operava no Brasil".
Essa infeliz preposição é espancada também de outras formas. Não fica bem dizer ou escrever "Eu a quero desde HÁ algum tempo", como já se leu por aí, nem, jamais, "Espero reajuste desde DE 1994". "Desde há" e "desde de" não existem nesta língua. A mãezinha do redator não se envergonhará se ele escrever "Eu a quero desde algum tempo" e "Espero reajuste salarial desde 1994".
Se é que interessa a alguém, "desde" compõe-se de "de" + "ex" + "de". Provém da antiga preposição latina "de ex", que significa "de dentro de".
"Desde" combina-se com "que", formando locução conjuncional "desde que": desde o tempo, o momento em que, desde quando. "Desde que" pode ser conjunção temporal, causal ou condicional.
Temporal: "Desde que partiste, minha vida ficou melhor."
Causal: "Desde que você recebeu propina, deve ir para a cadeia."
Condicional, com verbo no subjuntivo: "Você ficará livre da cadeia, desde que reparta essa bufunfa com a gente."

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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