São Paulo, segunda-feira, 26 de fevereiro de 1996
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Cruzado, só por milagre

LUÍS NASSIF

O Cruzado ainda é um plano capaz de suscitar paixões incontidas -contra e a favor.
Dez anos depois de sua implantação, a soma de conhecimentos e experiências acumuladas comprovam que era mais fácil boi voar do que o Cruzado dar certo.
As razões são variadas:
1) Baixo grau de conhecimento acumulado sobre a economia brasileira.
O único grupo com claro diagnóstico sobre a nova etapa de desenvolvimento -técnicos do BNDES que elaboraram a "teoria da integração competitiva"- não teve acesso aos governantes da época.
O meio acadêmico -de onde surgiram os cruzados- tinha uma visão claramente insuficiente sobre o momento econômico e a nova fase de globalização da economia.
O combate aos processos hiperinflacionários exige, como fundo, um conjunto de reformas que devolva o equilíbrio às contas públicas e a eficiência à economia.
A troca de moeda com fixação do câmbio -eliminando a inflação inercial- é apenas o fecho do processo.
Nenhum dos núcleos acadêmicos que ascendeu ao poder, no entanto, tinha idéia, ainda que pálida, sobre como proceder à abertura da economia, reformar a Previdência, despolitizar o Orçamento, redefinir a política de abastecimento ou mudar a estrutura tributária -que são os temas verdadeiramente relevantes de um programa de estabilização.
2) Falta de condições estruturais da economia.
Na Folha de ontem, o professor Luiz Gonzaga Belluzzo defende a idéia de que o Cruzado fracassou porque a situação externa era desfavorável -dado o baixo montante de reservas cambiais acumuladas.
Suponha-se que o nível de reservas cambiais fosse suficiente. De que maneira financiaria importações (necessárias para atender ao aquecimento da demanda) se importar era proibido -e o próprio núcleo unicampista, o que mais influenciava o PMDB, era composto de defensores intransigentes da reserva de mercado?
3) Plano tecnicamente imperfeito.
O Cruzado -como veio ao mundo- era um plano de estabilização que aumentava salários por decreto, estimulava a formação de estoques com uma política de juros frouxa, e mantinha o comércio exterior fechado, jogando toda a responsabilidade da manutenção dos preços nas costas do congelamento.
Além disso, havia amplo desconhecimento da parte dos acadêmicos sobre o universo de contratos e operações mercantis em geral da economia.
A fórmula de conversão das prestações do SFH, por exemplo, gerou rombo superior a US$ 20 bilhões. A conversão da Previdência privada transformou em pó todos os planos existentes na economia.
4) Processo gerencial caótico.
A política econômica ficou nas mãos de acadêmicos sem nenhuma experiência gerencial. Em alguns casos -como na Fazenda- a equipe econômica abriu mão do concurso da burocracia pública, acusada de estar contaminada de "delfinistas".
Sem o apoio da burocracia, praticamente nenhum processo era encaminhado. Basta ver o que ocorreu com as importações de carne e feijão, contratadas em pleno apogeu da crise de abastecimento do Cruzado, e que só chegaram ano e meio depois ao país.
5) Interferências do núcleo próximo a Sarney.
Já na reedição do decreto do Cruzado, observava-se a influência deletéria de pessoas próximas ao presidente da República, como o então consultor Saulo Ramos.
Coube a Saulo, sem consulta aos cruzados, convencer o presidente a alterar o artigo 33º, permitindo a manutenção de dúvidas no caso da correção de dívidas de concordatas e liquidações extrajudiciais.
6) Politização entre os cruzados.
No início do plano, estava claro para a opinião pública que os grandes avalistas do governo eram os cruzados. Esse poder moral nunca foi exercido.
Uma disputa intestina entre os diversos grupos fez com que se tornassem massa de manobra fácil para os interesses políticos do grupo de Sarney.
O grupo dos "inercialistas", reunido em torno do Banco Central, foi o que mais resistiu às pressões políticas.
Mas os dois outros grupos não agiram na mesma direção. Os grupos da Fazenda (que alimentava sonhos de fazer de Dílson Funaro o sucessor de Sarney) e do Planejamento estavam mais empenhados em disputar a simpatia do presidente da República. E a maneira mais fácil era minimizar os problemas que surgiam.
Essa soma de fatores demonstra que o Cruzado só teria dado certo por milagre. Infelizmente, as fantasias suscitadas por ele atrasaram em muitos anos a tomada de consciência do país para as questões verdadeiramente relevantes, ligadas às reformas estruturais e à busca da eficiência e da produtividade na economia.

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