São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

"Rediscutir encargo social é vitória do bom senso"

Folha - Este mês faz dois anos da introdução da URV. Como vai o Real, na sua opinião?
José Alexandre Scheinkman - Ainda há problemas fundamentais a serem resolvidos antes que a gente possa considerar o plano bem sucedido. O problema principal é equilibrar os gastos com as receitas do governo em todos os níveis. Isso ainda não foi feito.
Folha - Na Argentina também não, mas nem por isso o plano deles naufragou.
Scheinkman - Mas os argentinos foram muito mais longe nessa questão. O Brasil ainda tem problemas fundamentais no nível dos Estados. Os bancos estaduais que o governo federal vai socorrer, por exemplo. O governo financiará metade do rombo do Banespa a taxas menores do que as que ele paga ao tomar dinheiro no mercado.
Folha - O buraco do Banespa é de R$ 15 bilhões. No futuro, pode voltar a ser um grande problema para a estabilização?
Scheinkman - Sim. Acho que deveríamos abolir os bancos estaduais.
Folha - E o financiamento do desenvolvimento estadual?
Scheinkman - Não conheço nenhum trabalho que demonstre que os bancos estaduais foram efetivamente financiadores do desenvolvimento regional.
Folha - O que mais podemos fazer para consolidar a estabilidade?
Scheinkman - Continuar com o processo de estabilização monetária é importante, mas estamos perdendo a carreira em relação às medidas que devem levar ao desenvolvimento.
A qualidade da educação no Brasil é um problema. É preciso arrumar mais dinheiro para a escola primária, talvez realocando-se recursos para a educação básica. Isso reflete na qualidade da nossa mão-de-obra. Esse governo pelo menos está falando nisso. O país precisa investir mais em saúde. E também melhorar os serviços básicos, como telefonia, portos etc. Folha - Um crescimento exagerado não comprometeria o plano?
Scheinkman - Temos de recuperar o crescimento. Se ele for causado pelo aumento dos gastos do governo, haverá mais inflação. Mas, se for resultado de uma força de trabalho mais educada e de uma melhor tecnologia, não há limites.
Folha - E se nada for feito?
Scheinkman - Se o ajuste fiscal não vier, esse plano vai embora. A sociedade tem de decidir sobre em cima do quê vai ser feito o ajuste. No Brasil, há uma situação muito parecida com a norte-americana. Há um consenso de que é preciso um ajuste fiscal, mas todo mundo quer o ajuste em cima do outro.
Folha - Essa conversa de ajuste fiscal já dura dez anos. Não é papo de economista?
Scheinkman - Não é papo furado, pois a resolução desse problema cria condições para o governo investir mais em outros setores que farão a diferença no longo prazo. Não fosse o déficit público (de R$ 32 bilhões em 1995) haveria mais investimentos em educação, por exemplo. Mas o dinheiro para isso não tem, está lá no Banespa.
Folha - O que o sr. acha do acordo coletivo com redução de encargos sociais sobre os salários?
Scheinkman - No mundo inteiro tem havido uma tendência de se diminuir os impostos diretos sobre o trabalho. Esses encargos aumentam o desemprego, geram perda de competitividade devido às diferenças entre o custo do trabalho entre um país e outro.
Folha - Mas as medidas propostas no Brasil são corretas?
Scheinkman - Pelo visto, sim. Veja por exemplo a contribuição ao Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). Não há nenhuma necessidade desse apoio ser feito através de impostos sobre o trabalho. Deveria ser um imposto sobre os rendimentos gerais. Esses gastos deveriam ser financiados por toda a população, não apenas pelos trabalhadores do setor formal. No fundo, o que está se diminuindo são os encargos, não os direitos do trabalhador.
Folha - O FGTS não é um direito do trabalhador?
Scheinkman - Sim, mas evidentemente há uma dívida do governo junto aos trabalhadores nesse fundo. Você fica muito mais tranquilo com o dinheiro na mão do que com uma dívida do governo, não é?
Folha - Mas quem paga a maioria desses encargos é a empresa empregadora.
Scheinkman - Isso é uma ilusão. O tributo recai sobre o assalariado, porque a produtividade dele é fixa e, se a empresa tiver de pagar mais, o dinheiro que vai para o governo deixa de ir para ele.
Folha - Em economias mais avançadas, há o desemprego estrutural, causado por avanços tecnológicos. Mas países em desenvolvimento, como o Brasil, combinam o desemprego estrutural com uma forte concorrência do subemprego de outros países, como a China.
Scheinkman - Há muito exagero quanto aos salários baixos dos outros países. Países com salários baixos têm produtividades relativamente baixas. Como é que os EUA e a Alemanha, que têm salários muitos mais altos que o Brasil e a Argentina, conseguem sobreviver? Os EUA têm uma taxa de desemprego por volta de 5,5%.
O impacto do comércio internacional sobre esse desemprego é pequeno. O que há é um aumento muito grande das desigualdades salariais. Pessoas com menos educação estão ganhando menos hoje do que no passado. Nos últimos 20 anos, a diferença de salário entre um norte-americano que acabou os primeiros quatro anos de universidade e um que só terminou o "high school" (ginásio) aumentou aproximadamente 40%. Destes 40%, somente uns 4% são atribuídos à concorrência externa.
Folha - A Europa está reavaliando o conceito do Estado do bem-estar social ("welfare state"). É uma vitória do pensamento liberal?
Scheinkman - Não acredito em vitória do liberalismo. Essa idéia de se colocar custos numa discussão sobre os programas sociais não é uma vitória do liberalismo, e sim do bom senso.

Texto Anterior: Economista de Chicago alerta para ajuste fiscal
Próximo Texto: Ortodoxia domina a escola
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.