São Paulo, domingo, 3 de março de 1996
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Dúvidas para os pensadores do próximo milênio

RICHARD RORTY
ESPECIAL PARA A FOLHA

A filosofia teve origem na tentativa de escapar para um mundo em que nada mudasse. Platão, fundador dessa área da cultura a que hoje chamamos "filosofia", supunha que a diferença entre o passado e o futuro seria mínima.
Foi só quando começaram a levar a história e o tempo a sério que os filósofos colocaram suas esperanças quanto ao futuro deste mundo no lugar antes ocupado por seu desejo de conhecer um outro mundo.
A tentativa de levar o tempo a sério começou com Hegel, que formulou detida e explicitamente suas dúvidas quanto à tentativa platônica de escapar ao tempo e mesmo quanto ao esforço de Kant em achar as condições a-históricas de possibilidade de fenômenos temporais.
É claro que o idealismo de Hegel entrava em conflito com o naturalismo de Darwin, mas mesmo assim Hegel e Darwin reforçavam um ao outro. Sua influência conjunta distanciou a filosofia da questão "O que somos?" e levou-a para "O que poderíamos vir a ser?".
Enquanto Platão ou Kant esperavam observar a sociedade e a cultura em que haviam vivido de um ponto de vista exterior, do ponto de vista da verdade imutável, os filósofos dos últimos dois séculos gradualmente abandonaram tais esperanças. Na medida em que levamos o tempo a sério, nós, filósofos, temos que abandonar a prioridade da contemplação sobre a ação.
Temos que concordar com Marx: nossa tarefa é tornar o futuro diferente do passado, e não continuar afirmando que sabemos o que o passado e o futuro têm em comum. Temos que deixar de lado o papel que os filósofos vinham compartilhando com sacerdotes e sábios, em nome de um papel social análogo ao do engenheiro e do advogado. Enquanto sacerdotes e sábios podem decidir sobre suas agendas de trabalho, os filósofos contemporâneos, como seus novos pares, devem procurar saber de que precisam seus clientes.
Uma vez que Platão inventou a filosofia exatamente a fim de escapar aos desejos transitórios e transcender a política, diz-se que Hegel e Darwin teriam "desistido da filosofia" ou "dado fim" a ela. Mas a filosofia simplesmente não pode acabar enquanto houver mudança social e cultural.
Tais mudanças inevitavelmente tornam obsoletas antigas descrições de nós mesmos e de nossa situação, criando assim a necessidade de uma nova linguagem, capaz de formular novas descrições.
Só uma sociedade sem política -isto é, uma sociedade regida por tiranos- poderia prescindir de filósofos. Em tais sociedades sem política, os filósofos não poderiam ser mais que sacerdotes a serviço da religião do Estado. Em sociedades livres, sempre haverá demanda pelos serviços dos filósofos, pois sociedades assim não cessam nunca de mudar, ou seja, de tornar obsoletos antigos vocabulários.
Pensadores como Marx, Weber, Ortega e Dewey tomaram nota das mudanças nas estruturas de poder que a Revolução Industrial ocasionara e advertiram-nos quanto à obsolescência e à insuficiência de nossos vocabulários tradicionais.
Dewey -filósofo que, como Marx, admirava Hegel e Darwin- sugeriu que víssemos a filosofia como fruto de "um conflito entre instituições de tendências incompatíveis": "Aquilo que parece pretensiosamente irreal quando é formulado metafisicamente torna-se intensamente significante quando conectado ao conflito entre crenças e ideais sociais".
Qual é então a agenda de trabalho a que os filósofos e os intelectuais de maneira geral devem atender neste final de século? Quais velhas crenças e tradições estão ameaçadas pelos novos desenvolvimentos culturais e sociais? De que precisam os clientes dos filósofos?
Tal como entendo a situação, o começo do novo século proporá o seguinte problema: os valores do Iluminismo -os valores que se encarnaram com maior ou menor sucesso nas instituições das democracias industriais- poderão sobreviver à derrocada da nação-Estado como unidade socioeconômica, derrocada esta que é uma consequência inevitável da globalização da economia?
Nos dois séculos posteriores à Revolução Francesa, as democracias industrializadas fizeram progressos consideráveis rumo à liberdade e à igualdade com que sonhavam os pensadores iluministas. Mas esse progresso foi obtido isoladamente em cada país, atacando problemas socioeconômicos com políticas localizadas. Não obstante, social-democratas e marxistas sempre pensaram que a nação-Estado deveria e acabaria por se extinguir.
Todos já imaginamos alguma vez uma comunidade cooperativa mundial -o "Parlamento do Homem, a Federação Mundial!" de Tennyson. Mas agora, quando a tecnologia finalmente tornou factível a globalização integral, nenhum de nós é capaz de imaginar como uma tal federação poderia existir, como um governo mundial poderia de algum modo ser democrático.
O problema está em que as atuais desigualdades nos padrões de vida não são compatíveis com uma organização política genuinamente global e internacionalizada, que oferecesse a cidadãos da Zâmbia, da Argentina, da Birmânia ou do Canadá as mesmas oportunidades.
Uma tal política certamente seria apoiada pela maioria da população mundial -os eleitores do Parlamento do Homem. Entretanto, as diferenças hoje vigentes são tidas por naturais pela classe média -a classe cuja existência e prosperidade são essenciais à viabilidade do governo democrático- de todas as democracias industriais.
Poucos membros da classe média argentina seriam bons cidadãos -obedientes e dispostos a apertar os cintos- de uma Federação Mundial dedicada a equalizar os padrões de vida na Argentina, Zâmbia e Paquistão. Poucos membros da classe média canadense nem sequer dariam ouvidos a uma proposta de nivelar as oportunidades socioeconômicas no Canadá, em Portugal, no Usbequistão e na Birmânia.
Mas também já não podemos esperar que as nações mais pobres adiem alguns séculos suas exigências de maior igualdade. Elas podem não querer esperar -e talvez não devam esperar- pela igualdade global por via de uma gradual ascensão a altos padrões de vida, num processo em que não haveria nivelamento ou perda de vantagens por parte dos países ricos.
A diferença entre os 50 países mais pobres e os 12 mais ricos é hoje tão grande quanto a diferença entre os muito pobres e a classe média bem de vida na Espanha ou na Inglaterra dos primórdios da Revolução Industrial.
O grito iluminista por justiça contribuiu para o surgimento, ao longo dos últimos 200 anos, de uma dúzia de países em que não se encontram tais contrastes terríveis entre miséria e afluência.
Mas são esses mesmos países que hoje não têm o menor interesse em rebaixar seus níveis de vida em nome de uma globalização da democracia.
Há boas razões para pensar que a globalização do mercado de trabalho será seguida não pela globalização da democracia, mas sim por uma quase insuportável pressão sobre as instituições democráticas dos países mais ricos.
Quando a justiça entra em conflito com a lealdade, esta última geralmente leva a melhor. Muitos de nós alimentamos e protegemos nossas famílias antes de podermos pensar sobre as necessidades de nossos vizinhos. Muitos de nós estamos muito mais interessados no bem-estar de nossos compatriotas do que na situação das pessoas do outro lado do mundo.
Mas os responsáveis pelas decisões econômicas que estão globalizando o mundo -e dizendo aos trabalhadores dos países industrializados que apertem os cintos a fim de competir com os trabalhadores de Cingapura e de Taiwan- orgulham-se de estarem acima das lealdades nacionais; declaram-se interessados na justiça em escala global. Mas esse discurso soa como uma desculpa pela traição a seus compatriotas, os trabalhadores cujos empregos estão sendo exportados para o Sudeste Asiático.
Não sei como se resolverá esta nova forma de conflito entre fracos e poderosos, isto é, o conflito entre os responsáveis pelas decisões econômicas e aqueles à sua mercê. Mas é óbvio que este conflito cria uma nova e incomensuravelmente maior fonte de tensão entre nossas lealdades particularistas e nosso senso de justiça universalista.
Gostaria que os intelectuais -e em especial os filósofos- pudessem ser de alguma utilidade no tratamento deste conflito entre valores tradicionais. Mas não estou certo de que os filósofos do século 20 tenham muito com que nos ajudar.
O movimento filosófico mais original deste século deriva de Nietzsche, e passa por Heidegger, Foucault e Derrida. Mas este movimento é de pouca valia para pensar problemas sociais. Mesmo Foucault, o que mais se aproxima de ser um pensador social, oferece apenas ressentimento e desconfiança frente a tudo o que lhe pareça uma usurpação de instituições sociais sobre a liberdade individual, mas nunca formula propostas de reforma dessas instituições.
Pensadores como Lyotard e Baudrillard tendem (como Heidegger antes deles) a dar as costas ao Iluminismo. Apesar das construções heróicas de Nietzsche e de seus seguidores, essa tradição tem pouco que se compare ao que Dewey esperava da filosofia: ela é incapaz de oferecer a espécie de redescrição e reconceitualização de nossa situação histórica que Marx e Weber ofereceram a nossos antepassados.
Ademais, a filosofia moral e política de pendor analítico e kantiano, dominante nos países anglófonos, tem tradicionalmente dado as costas Hegel, a Marx e à história. Ao contrário da tradição nietzschiana, ela voltou-se para dentro, para longe das necessidades sociais, dedicando sua atenção às necessidades do indivíduo cultivado, à sua tentativa de transformar sua própria vida numa obra de arte. Seus pronunciamentos têm sido a-históricos, relegando às ciências sociais empíricas as questões relativas à mudança social.
Não há porque esperar ajuda dessa tradição no que toca ao problema justiça versus lealdade. Pois essa filosofia continua a conceber a justiça como valor universal e transcendente, tratando a lealdade como questão empírica, indigna de qualquer papel na deliberação moral.
Mesmo assim, alguns filósofos contemporâneos lograram em grande medida libertar-se de Kant sem voltarem-se para Nietzsche. Penso em Jürgen Habermas na Alemanha, Charles Taylor no Canadá e Michael Walzer nos EUA. Esses pensadores tentaram situar-se na tradição de Hegel, Marx e Weber.
Nenhum deles é ou permanece marxista, mas todos concordam com Dewey quanto à necessidade constante do que Marx fez por nós -despertar-nos para a possível obsolescência dos vocabulários com que levamos a cabo as deliberações morais e políticas ou projetamos nossas visões utópicas.
Tanto quanto sei, os melhores livros recentes a respeito do conflito entre justiça e lealdade são da autoria de Michael Walzer: "Spheres of Justice", de dez anos atrás, e o novíssimo "Thick and Thin". Este último é de especial importância ao argumentar que o universalismo não é intrínseco à moral- ao contrário do que afirma os kantianos.
Na concepção de Walzer, os códigos morais são sempre locais, restritos e "densos". O universalismo "ralo" é, por assim dizer, o creme que -com sorte e em circunstâncias especialmente afortunadas- flutua sobre códigos morais locais e particularistas; ele não é a raiz de onde brotam nossas percepções morais. Walzer está na verdade repondo em circulação a grande objeção de Hegel à ética de Kant: a obrigação universal de agir dignamente frente a todos os homens não deixa lugar às fidelidades particulares que formam nossa identidade moral -nossa fidelidade à nossa cultura, ao nosso país, à nossa tradição histórica.
No próximo século, nossos filhos passarão por conflitos acerbos entre sua lealdade às pessoas e sua obrigação de continuar a trabalhar por uma utópica democracia global. É possível que muitos intelectuais não venham a contribuir para a solução do problema, mas filósofos como Walzer certamente serão mais úteis que muita gente.

Tradução de Samuel Titan Jr.
O artigo do escritor Javier Marías deixa excepcionalmente de ser publicado nesta edição.

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