São Paulo, terça-feira, 5 de março de 1996
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O presidente da república também é cultura

ARNALDO JABOR
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

No discurso que FHC fez no México, há uma angústia: "quem somos nós?" Sabemos o que é "globalização". Mas, e de nós, o que restou? A posição de "explorado" mudou para a posição do "excluído". O explorado era vítima de uma injustiça dos homens maus do capitalismo. E o excluído, quem o penaliza? Ninguém. O progresso, talvez. O capitalismo perdeu o rosto de burguês gordo e virou um abstrato cassino sem culpa. A guerra entre o bem e o mal não houve. E agora estamos tentando descobrir se ainda há um lugar para nós, neste trem que passou.
Antes, a razão se instalaria na terra. O que restou disso? Restou Cuba, escangalhada. Restou a China querendo invadir Formosa, restou o Ieltsin de porre.
Que fazer? Acabou a crença de que o mundo é politicamente controlável. Estamos numa onda de maremoto "global", onde só resta navegar por caminhos estreitos, tentando políticas compensatórias para "minorar" o mal dos excluídos.
O discurso de FHC quer salvar os pobres, mas quer também salvar a USP. O discurso humanista aspira a um "rationale" plausível.
As premissas se montam, buscando a alegria da conclusão; o ritmo do pensamento se ajusta em teia; as idéias crescem e concluem com bom acabamento aerodinâmico. Existe uma arte de esculpir discursos. Isto é o que restou aos intelectuais. Restou o ritmo elegante da autocrítica, restou o lamento francês das ilusões perdidas; restou a crítica às totalidades e o elogio dos fragmentos (como se fossem uma nova totalidade). Só que FHC, além de intelectual, é presidente. Como vai agir? O discurso de FHC tem duas partes. Na primeira, descreve o enigma econômico e social do mundo atual. Na segunda, lança brados humanistas na base do "é preciso". A primeira parte é perfeita como diagnóstico. A segunda ainda é um desejo apenas. Como planejar soluções de justiça, se a matéria do mundo baniu a idéia de solidariedade? Na hora do "que fazer?", ninguém sabe.
"Gap" teórico
A tarefa com que se defronta FHC é difícil como um golpe de tai chi. Há que abrir o caminho para o adversário (capital global) e habilmente desviar seu curso para fazer valer alguma política social. Ao Estado caberia esta política de compensação. Só que o Estado não produz teoria sozinho.
Estamos num "gap" teórico, de onde tentamos nos salvar com palavras. Não sabemos ainda o que é o tal "pós-liberalismo", como cunhou Touraine, buscando termos que nos salvem. Só que o impasse social não se resolve com linguagem; resolve-se pela produção de realidades novas e pela demarcação de diferenças. Hoje só há dois rumos disponíveis: 1) As políticas "compensatórias" de um assistencialismo "liberal". 2) Os dogmas religiosos de uma esquerda arcaica. Em busca de uma "terceira" via política, os intelectuais babam aqui, no México e na França. Que produção de identidades poderá demarcar nossa diferença? FHC pode formular uma política social possível para os países dependentes. Só que isto exige ousadia e humildade, duas coisas quase antônimas. FHC corre o perigo de achar que ele "é" a teoria. Assim como vive nesta corda-bamba entre o PFL e a CUT, tem de distinguir entre a estratégia e o bonapartismo. O governo só formulará uma política nova se estimular urgentemente uma cultura nova.
Quem éramos nós? Entre ilusões e verdades, éramos um país de "Terceiro Mundo", "país do futuro" e coisa e tal. E hoje, o que nos define? Esta apropriação brega do "kitsch" internacional? Este tênis Nike? Esta Internet, esta "pulp fiction", esta bosta toda? O que nos diferencia?
O "não-saber"
Só uma "produção de identidades culturais novas" poderá fecundar, como vírus secundários, conceitos para formularmos uma política social. Como FHC fez seu discurso no México?
Falando em cima de realidades que ele viveu. Na USP da r. Maria Antonia, na leitura do "Capital", cruzado com a sociologia do "oprimido" de Florestan Fernandes, nos rastros da antropofagia de 22, nos frutos da viagem de Levi-Strauss, nos ritmos do pensamento acadêmico, nas palavras-chave que a "episteme" de hoje nos forneceu, tudo isto cozinhado e temperado pelo desenvolvimento científico que a riqueza de São Paulo possibilitou. Ou seja, quem fez o discurso de FHC no México não foi só ele; foi o caldo em que nadou, a sopa de letras onde bóia.
Presidente também é cultura. Não pode confiar só na razão, neste ideal platônico de harmonia ideal. Há coisas que ninguém sabe. Nem o presidente. Daqui a alguns anos seremos "de época" e, olhando para trás, veremos nosso erro de hoje. O governo brasileiro tem de estimular nosso "desconhecido" cultural.
Este rico "não-saber" tem de ser cultivado. Neste "não-saber" é que está nossa verdade maior. Por isso, o governo tem de vitalizar a cultura brasileira no que ela tem de imprevisível. A demarcação desta "latinidade" tem de ser feita. E não estou falando de uma política cultural, para irrigar a "artezinha" ou coisas assim.
Falo do oposto: uma cultura para irrigar uma política sem saída. A cultura é que cria um futuro político. No México, Chiapas talvez não tenha importância política. Mas tem importância cultural. O mesmo para a crise do PT.
Flash do real O mistério do "real" só pinta na arte e na cultura. Por ela, se faz um buraco no tempo e deixa-se o "real" invadir o simbólico e se fazer realidade. Houve uma faísca de luz quando Michael Jackson surgiu no meio do Olodum e virou um grande "flash" no morro dona Marta. Uma explosão de luz sobre a miséria. Por uns momentos, a miséria falou e existiu, em cima da materialidade concreta da produção musical da bicha americana. Isto é materialismo moderno, isto é "produção de identidade", mesmo que casual. Spike Lee e Michael Jackson criaram o mais claro instante da cultura brasileira recente. Irônico, não é? Mas havia por baixo a realidade concreta da Sony e de um clipe com interesse de milhões de dólares. "Co-extensivo", não é? "Sobredeterminado", não é?
Em outros termos, a nova realidade brasileira tem de ser "produzida", porque a verdade é que não sabemos mais quem somos. Nem vamos descobrir pelo "papo racional". Deixa a noite chegar. Deixa o "a posteriori" histórico se manifestar, deixa vir a produção de identidades culturais. Temos música, cinema, teatro, Bahia, negros sertões, miséria, luxo, etnos, ethos, antropos, violência, carnaval. Coisas sem nome, mas que existem. Precisamos do mistério brasileiro.

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