São Paulo, domingo, 24 de março de 1996
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Quatro por todas

DALMO MAGNO DEFENSOR
ESPECIAL PARA A FOLHA

Qualquer pessoa gosta de ser elogiada, em especial por suas virtudes. Um elogio sincero, feito na hora certa e com palavras bem escolhidas, é um golaço de oratória: desarma espíritos, atrai simpatias, recompensa esforços.
Em oposição, um elogio imprudente, mal formulado, pode soar até como insulto, e não há boa intenção que o salve. Ficando na imagem futebolística, é um gol contra. Um bom exemplo é a frase "Ela é muito inteligente, apesar de ser mulher", dita há alguns anos por um empresário.
Em 9 de março, a Folha publicou trechos de discursos proferidos no Senado em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, comemorado na véspera. O tom dos oradores foi elogioso, mas algumas frases que disseram são primas-irmãs do tropeção empresarial citado acima.
O senador Romeu Tuma elogiou sua mulher, que, em 30 anos de trabalho, "nunca descuidou daquilo que é importante: ficar ao lado do marido". Bernardo Cabral disse que a mulher precisa de condições para "ser o que ela realmente é: a companheira que está firme na condução do lar, na criação dos filhos e na proteção do marido..."
Imagino o quanto tais frases soam mal a ouvidos femininos emancipados. A própria redatora da reportagem, discordando do conceito cabralino sobre o que as mulheres "realmente são", usou expressões como "pérola machista" e "até que começou bem, mas logo escorregou".
Escrevi "imagino", em vez de "sei", por falta de referência. No mundo masculino não se vive mal-estar correspondente ao da mulher que ouve dizer que seu nicho ecológico é sua casa, ou que ela é um importante apêndice do homem.
No mesmo dia dos discursos, no finzinho do "Jornal Bandeirantes", uma reportagem narrada por Carla Vilhena mostrou quatro mulheres que desafiaram estatísticas e escaparam de seu destino "natural".
Veralucia, ex-empregada doméstica, obteve licenciatura em história com a monografia "O Povoado do Capão das Flores". Ângela, abandonada pelo marido, sustenta cinco filhos fazendo funilaria ("lanternagem" no Rio, "chapeação" no Sul) em automóveis. Luzia, ex-detenta, aprendeu a confeccionar mochilas e tornou-se microempresária.
Marinalva Imaculada, 31 anos, órfã desde os 13, tinha apenas a quarta série e quatro filhos pequenos quando resolveu ir à luta. Estudando à noite, manteve-se trabalhando de dia em uma creche e fazendo faxina de madrugada.
Marinalva passou em primeiro lugar no vestibular da PUC de Campinas, mas não conseguiu bolsa de estudo integral, imprescindível para quem ganha R$ 260 por mês. Persistente, tentou a Unicamp, pública e gratuita, e passou.
Olhando firme para a câmera, a confiante caloura do curso de pedagogia diz: "Consegui auto-estima. Agora, vou continuar estudando e buscando ascensão social." Grande Marinalva, celebrada depois no "Fantástico" e no "Jô Soares Onze e Meia".
Após a entrevista com Veralucia, a historiadora, a reportagem da Band mostrou-a, de bolsa no ombro e material abraçado junto ao peito, entrando em um prédio de aparência universitária. Só que o prédio parecia ser o da Faculdade de Medicina da USP, e não o da História, como conviria à exatidão jornalística.
Renuncio, porém, à implicância. Valeu por cem discursos mostrar mulheres humildes, gente que "tem jus a que lhe dêem os meios necessários para a luta na vida social", como Machado de Assis escreveu há 115 anos, e que conseguiram os tais meios sozinhas. Confete nas quatro, e também na Carla Vilhena.

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