São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 1996
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Quatrilho perdeu o Oscar para tolice feminista

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

O Oscar de melhor filme estrangeiro acabou sendo conferido a um filme holandês, "A Excêntrica Família de Antonia", que está em cartaz no Cinearte 1. Não é brasileirada minha, pela derrota de "O Quatrilho": esse filme é muito ruim. Curioso, interessante, mas ruim.
Conta a história de cinco gerações de mulheres. Começa logo depois da Segunda Guerra Mundial, quando Antonia volta para sua aldeia na Holanda, acompanhada de sua filha. Antonia veio assistir aos últimos dias de vida de sua mãe, que está completamente esclerosada. A mãe não a reconhece. Grita o tempo todo impropérios contra o falecido marido, de quem parece guardar uma enorme raiva. Depois, morre.
O tempo passa. A filha de Antonia resolve engravidar, sem casamento. Antonia leva-a até a cidade, onde o objetivo é atingido com grande facilidade. A neta que nasce é uma superdotada, independente, e acaba tendo uma filha. Enquanto isso, Antonia protege e adota uma moça meio retardada da vizinhança, que era estuprada pelo irmão. Esse mesmo canalha estupra a neta de Antonia. Antonia se vinga dele.
São estes, basicamente, os fatos do filme. Não digo que não sejam envolventes. Há outros personagens bem-caracterizados. Antonia termina morrendo, junto a uma enorme mulherada a quem protegeu e apoiou ao longo da vida.
Não gostei do filme por vários motivos. O primeiro é formal. Em quase todos os momentos de "A Excêntrica Família de Antonia", sente-se uma grande falta de tensão. Como em tantos filmes europeus, o espectador raramente se pergunta: "e então? o que vai acontecer?"
A pergunta não é tão ingênua quanto parece. Não estou pensando apenas em filmes policiais, em banguebangues, onde o interesse pelo desfecho e pela ação predominam. O interesse "pelo que vai acontecer" não se resume a isso. Pode se dirigir a outros planos, que não os da ação propriamente dita. Mesmo o poema mais abstrato, mais elevado, só fica bom de fato quando impõe ao leitor essa curiosidade dupla: "o que está acontecendo neste texto? O que vai acontecer na estrofe seguinte?"
O imperativo da tensão, o sentimento de que alguma coisa está sendo feita (no filme, no diálogo teatral, nos versos de um poema) é uma das palavras-chave da crítica moderna, e acredito que corresponde bem ao que possa ser entendido como fato estético.
Tive uma vez um professor de música, que resolveu aceitar o difícil desafio de explicar o que é uma melodia bem-feita. Usou de duas metáforas. A primeira era em forma de pergunta: "o que você prefere ver, a chama de uma vela ou uma lâmpada elétrica?" Claro que é a chama de uma vela. Nunca sabemos para onde ela vai se inclinar. Uma lâmpada é sempre igual, coisa das mais chatas.
A outra explicação do professor de música era mais elaborada. "Imagine", dizia ele, uma pessoa com um elástico na mão. Atrás dessa pessoa há um relógio, com um ponteiro de segundos. Quando o ponteiro está marcando 12, a pessoa começa a puxar o elástico. Vai puxando, puxando, e o ponteiro vai dando a volta no mostrador. Quando faltam cinco segundos para que o ponteiro dê a volta completa, o elástico está a ponto de romper-se. Você olha alternativamente o elástico e o ponteiro.
Suponha então que, quando o ponteiro chegar aos 12 novamente, a pessoa pare de puxar o elástico, afrouxando-o entre as mãos. A reação de quem está assistindo será um "ah" de alívio. Mas suponha que, em vez disso, quando o ponteiro chegar aos 12, o elástico se rompa, tal como temíamos: o efeito será antiestético, bobo, sem alívio, sem sublimação.
Ou seja: havia um jogo, puramente abstrato, entre expectativa e desfecho, que pode ser bem ou mal jogado. A isso, vagamente, podemos chamar de tensão; um filme sem tensão, meramente discorredor de acontecimentos sem que saibamos porque eles estão sendo contados, é ao mesmo tempo chato e tolo. Pode não ter acontecimentos, crimes, violências, sem padecer desse defeito. Mas a chatice, entendida dessa ótica abstrata, isto é, como ausência de tensão, é um defeito estético dos mais graves.
"A Excêntrica Família de Antonia" é um filme quase sempre destituído de tensão. E, como tantos filmes desse tipo, tenta corrigir o problema de uma forma ainda mais problemática. Recorre ao insólito, ao fantástico, ao estranho. A mãe de Verônica está posta no caixão, aparentemente morta. Só que de repente se levanta, dá um sorriso. O Cristo no crucifixo olha para ela, balança a cabeça e sorri. O efeito disso é simplesmente grotesco, unindo o pretensioso ao desagradável.
Pretendendo fazer do desconcertante um antídoto para a falta de tensão, o filme é formalmente ingênuo, amadorístico. Mas o pior diz respeito ao conteúdo.
Trata-se, o tempo todo, de criar uma espécie de utopia lésbico-feminista, onde um matriarcado triunfante reduz os homens a um papel secundário na trama.
Antonia, já uma matrona, resolve aceitar o amor de um fazendeiro cinquentão. Sua filha escolhe um homem de motocicleta para que a engravide. A neta usa os homens como bem entende, sem se interessar muito, já que é um intelecto superior, com dotes sobrenaturais para a música e a matemática. O canalha estuprador de quem falamos acima não é denunciado à polícia, mas sofre represálias terríveis de Antonia.
Qual o sentido de todo esse filme? Ou estou muito paranóico, ou é o seguinte: trata-se de mostrar um mundo ideal, onde as mulheres se tornam independentes da Lei e do Estado, essas invenções masculinas, e também das convenções religiosas. Põem em prática uma moralidade feminina, ou seja, voltada para a família, ignorante da política e da esfera pública, fechada em si mesma, na redoma de uma pequena propriedade camponesa.
Não que os valores especificamente femininos, de uma moral do sentimento e da solidariedade familiar, não sejam respeitáveis. Mas a utopia descrita no filme é simplesmente falsa, particularista e atrasada.
Falsa, porque um filme menos comprometido com sua própria ideologia haveria de mostrar a matriarca como uma pessoa no mínimo autoritária.
Particularista, porque nela os homens simplesmente não têm lugar. São objetos. Não de desejo, como as mulheres o são para os homens -e isto muitas vezes as dignifica. São objetos instrumentais, máquinas de fazer filhos ou de trabalhar: objetos de família, conveniências camponesas, sem maior interesse.
Utopia atrasada, também, porque prescinde da esfera política, imagina-a dispensável; é como se o Estado não existisse no mundo de Antonia, sendo supérflua, assim, qualquer ação que se dedicasse a criticá-lo.
O resultado é um filme feministicamente tolo, artisticamente falho e irritantemente pretensioso. Ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro por complexo de culpa politicamente correto. Só que tem pouco de político e nada de correto. A Academia de Hollywood, mais uma vez, mostra sua simploriedade quando quer dar de avançadinha.

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