São Paulo, sexta-feira, 29 de março de 1996 |
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Boto parece uma Barbie de uma perna só
NINA HORTA
Mas a Amazônia é a Amazônia, a Hiléia, o verde que satura o imaginário do mundo, o inconsciente, o id verde-amarelo, o cheiro de jacaré e onça pintada, tucunarés e pirarucus nadando em águas pardacentas. Piranhas, igarapés, contas coloridas, miçangas, espelhinhos, muita pena e muita pluma. Embarcamos, Fitzcarraldos caboclos e conscientes, com meio olho no plano da festa e boca inteira para comer a Amazônia. Já no avião, um espaguete de microondas com carne moída cheia de nervos. Céus, porque não um bom sanduíche de presunto e queijo. O que se passa na cabeça deste serviço de catering? Já esperávamos sentir, ao se abrir a porta do avião, o bafo quente dos trópicos, a respiração curta, a umidade subindo da terra e empapando o corpo de suor. A ordem, vinda de São Paulo, era a de correr para o ar refrigerado do hotel e fazer a sesta. Mas, estava frio. É inverno em Manaus. E bafo de selva, assim, profundo, só em Kew Gardens, em Londres, onde fizeram estufas para as mudas de látex que levaram daqui. Há trinta anos acalentava um desejo morno de tomar um tacacá no tucupi, depois de ter lido o livro de Oswaldo Orico, "Comida Amazônica". Um tacacá com molho de pimenta, jambu, goma e camarões, a ser tomado entre 4h e 5h da tarde, quando o calor diminui. É esta a hora do tacacá, tomado em cuia simples, lisa, toda preta. O que tem que ser bom é o tucupi, líquido extraído do polvilho da mandioca, o resto é tempero. O jambu é a folha saborosa que entorpece a boca e a língua. Tontas, mal informadas, corremos para o tacacá das 5h, depois do trabalho. Foi um susto só. Miami é aqui. Arroz, sorvete, ketchup, sopa, sucos, mostardas, atuns, frutas em calda, cocas e colas. Sunluck, Swensen's, Del Monte, Heinz, Sunburst, Dijon, Old Monkey, Grey Poupon, Libby's, Hunt's, Starkist, Bumble Bee? E a paca no tucupi? A sopa de tartaruga, o pequiá com farinha d'água, o casquinho de muçuã, a pupunha cozida, o cará, o munguzá, o mingau de banana verde, a unha de caranguejo, o açaí, o chibé, o guaraná? Engolimos em seco. Amanhã é outro dia. Já sei que em todos os lugares do mundo quem entende de comida nativa são os motoristas de táxi. Tenho fé nos motoristas de táxi. Acredito neles. Mudamos de rumo e partimos para o encontro do rio Solimões com o rio Negro. Rios que não misturam suas águas, cada um com sua cor, sua raça, andando juntos sem aderir, um fenômeno... Andrea aponta energicamente para que eu veja alguma coisa nas águas. O boto cor-de-rosa? O boto? O boto? Pois acreditem. Exatamente na linha do encontro dos rios, à deriva, subindo e descendo nas ondas causadas pelo barco, uma Barbie de uma perna só vestida de dourado! Arre! Esta foi a primeira aventura. Vieram outras, logo depois. Texto Anterior: Nas alturas; Faisão; Encomenda; Curso Próximo Texto: Pessach marca saída dos judeus do Egito Índice |
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