São Paulo, sábado, 30 de março de 1996
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O alerta da vaca louca

PEDRO DE CAMARGO NETO

A encefalopatia espongiforme bovina, EEB, doença da vaca louca, vem preocupando os pecuaristas do mundo inteiro há quase dez anos. Os primeiros casos surgiram no Reino Unido, em 1988. Foram identificados como consequência da utilização de miolos de carneiro na formulação de ração para vacas leiteiras. Alterada a formulação da ração, o número de casos em bovinos vinha caindo drasticamente, oferecendo a impressão de que os danos estavam controlados.
Posteriormente surgiram casos em gatos, trazendo a idéia de que o mal poderia ser transmitido para outras espécies animais e, com natural e grande preocupação, para o homem. Repentinamente, em função de surto da pouco usual doença humana conhecida como Creutzfeldt-Jakob, especulou-se que os bovinos afetados pela EEB poderiam estar transmitindo o mal para o homem. Com a ausência de uma manifestação precisa das autoridades de saúde pública do Reino Unido negando essa possibilidade, o tumulto que estamos assistindo era previsível.
Não existe nenhuma prova científica que ligue uma doença à outra. Mais importante, porém, falta provar o contrário, isto é, que elas nada têm a ver uma com a outra. O tumulto político que virou o caso dificulta ainda mais um debate científico visando identificar com precisão eventuais correlações e métodos de propagação da doença. Internamente à própria União Européia existe ainda grande confusão. No mês de julho de 1995, participei de reunião no Ministério da Agricultura inglês, quando quatro veterinários e cientistas, confesso, praticamente me convenceram da ausência de riscos.
E no Brasil, como é que fica? Felizmente estamos livres deste mal. Mesmo em países muito mais próximos do Reino Unido a doença não se propagou. O pecuarista brasileiro, porém, não tem motivos para comemorar. A pecuária brasileira é extremamente competitiva, não precisando de desgraça para crescer. O que tem faltado são condições leais de mercado, com a queda de injustas barreiras comerciais. Mesmo que exista um aumento imediato nas exportações de carne, com reflexos positivos nos preços, no longo prazo a pecuária bovina mundial sai perdendo. A desconfiança do consumidor terá de ser trabalhada. A redução no consumo de carne bovina é uma realidade que terá de ser enfrentada pelo setor.
É importante, também, elucubrar sobre como um caso deste tipo seria tratado no Brasil. A desestruturação do serviço público de uma maneira geral é uma realidade. Os serviços de saúde animal, tanto a nível federal como estadual, enfrentam inúmeros problemas. A questão salarial do funcionalismo, a organização das carreiras, os concursos públicos são questões básicas que deverão algum dia ser tratadas na esperada reforma administrativa.
O desmantelamento da burocracia tem sido agravado pela escolha quase sempre em cima de critérios político-partidários dos principais cargos públicos. Aceita-se como normal e correto que grupos políticos de interesses, muitas vezes pouco identificados com o próprio eleitor, postulem indicações para cargos ignorando suas funções básicas. Estamos certamente construindo nossa democracia, esforçando-nos para imaginar que já temos o Parlamento que necessitamos. Infelizmente, inúmeras questões necessariamente não vão esperar esta reconstrução democrática, em particular saúde e educação.
A sociedade ainda não aprendeu a reagir com eficiência na procura de serviços públicos competentes. O modelo de gestão dos interesses da coletividade foi bastante desmontado, porém pouco ou quase nada surgiu em seu lugar. Andar pelos corredores dos ministérios em Brasília assusta. Pior do que isso, pouquíssima discussão existe sobre como e o que reconstruir.
O Fundepec (Fundo de Desenvolvimento da Pecuária do Estado de São Paulo) é uma entidade de pecuaristas, que por meio de convênio com o Estado participa de uma experiência com uma das mais simples das doenças da pecuária, a febre aftosa. No momento em que o cidadão pecuarista, principal interessado no serviço público de saúde animal, passou a assumir sua parte de responsabilidade, e mesmo se interessar e apoiar o serviço público, a melhora nos serviços ficou evidente. Em 1995, o número de focos da doença foi 10% do ano anterior. De controle sobre a doença, passamos hoje a tratar de medidas para erradicá-la.
Falta ainda um longo caminho a ser percorrido, e o relativo sucesso na febre aftosa representa um pequeno embrião de modelo de gestão de interesses da coletividade. A parceria construída nos últimos anos entre os pecuaristas e os funcionários do serviço de saúde animal oferece um rumo que precisa ser melhor trabalhado e ampliado.
A tragédia da vaca louca, antes de tudo fruto de erros no tratamento da questão por parte do serviço público inglês, precisa servir de alerta para nós, brasileiros. Não estamos preparados para enfrentar questões muito mais simples, e o ânimo existente, nos corredores dos ministérios de Brasília, no Congresso Nacional, nas cidades e nos campos, parece ignorar os riscos que poderemos ainda enfrentar.

Texto Anterior: A profecia de Braudel e a globalização
Próximo Texto: Saiba como declarar empréstimo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.