São Paulo, sábado, 30 de março de 1996
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O idioma português vai virar língua de pobre

ANTONIO CALLADO
COLUNISTA DA FOLHA

Desde ontem, dia 29, o Instituto Rio Branco, no qual o Itamaraty forma seus futuros diplomatas, deixou de considerar eliminatória a prova de francês. Não é mais necessário que o idioma considerado como a "língua diplomática" até, digamos, a primeira metade deste século, continue saber obrigatório para uma carreira que em geral chamávamos "carrière".
Ora, muito bem. Já que estamos em fase de mudanças no Itamaraty, talvez fosse o caso de mudar o nome do Instituto, pois o barão do Rio Branco dificilmente conceberia que um colégio de diplomatas brasileiros deixasse de usar o idioma no qual ele próprio escreveu sua "Esquisse de l'Histoire du Brésil", de 1889.
Aos jornais do Rio o diretor do Instituto Rio Branco, ministro André Amado, tem dado explicações várias acerca da vantagem de tirar dos exames eliminatórios o idioma francês. Não se trata de alguma revolução voltada para o futuro, como, digamos, a substituição do francês pelo chinês, falado hoje em dia por 1,2 bilhão de seres humanos que abandonaram definitivamente seus cachimbos de ópio e tratam de voltar ao palco da história.
Não há nada de novo e sensacional assim nos planos do instituto. Fica-se apenas com a idéia de que o francês é uma chatice e de que a única língua que todo o mundo fala agora é mesmo o inglês.
O ministro Amado concorda, aliás, com a informação, que foi divulgada, de que a prova de francês, que recentemente derrubou vários futuros diplomatas no exame de admissão era mal formulada e cheia de palavras consideradas difíceis mesmo pelos que, na "carrière", ainda falam francês.
Assim, como matéria eliminatória, o francês teria provocado uma hecatombe de reprovações. No ano passado só 24 dos 545 candidatos inscritos teriam sido aprovados. Tal como se o francês fosse uma doença contagiosa da qual todos, antes, fugiam, este ano, sem a exigência do francês, o número de inscritos aumentou para 2.361, foi o que disse o ministro em entrevista à imprensa. Teria bastado assim eliminar o francês para o Itamaraty se tornar atraente.
Depois de denunciar tal repugnância pela língua de Pascal e de Brigitte Bardot, o ministro acrescentou, talvez com algum remorso: "Também a melhoria do salário inicial -que pulou de R$ 600 para R$ 2 mil mensais - atraiu mais candidatos a diplomata".
A seguir, em artigo assinado ("Jornal do Brasil", 25.3.96) o ministro Amado continuou, vago e apologético: "Afinal, o IRBr é uma instituição respeitada dentro e fora do país pela excelência dos quadros que soube preparar e treinar. (...) Se a retirada do francês do concurso vier a comprometer esse padrão de treinamento, apesar de tantas evidências em contrário, o Itamaraty será o primeiro a rever sua decisão."
Nem nas notícias nem no artigo assinado menciona o ministro a importância cultural do aprendizado para nós da mais culta das línguas derivadas do latim. O latim há muito já foi banido do ensino secundário brasileiro. Agora, nem os diplomatas saberão falar francês.
O que eu sinto, no Instituto Rio Branco e no país em geral, é um descaso cada vez maior pela nossa cultura. A única coisa que sabemos e que parece nos preocupar é que o inglês é hoje muito mais falado e mais "útil" que o francês. Acontece que não é uma língua latina. É um pouco a língua de todo o mundo, mas -atenção- tenho encontrado vários e jovens diplomatas americanos que já chegam ao Brasil falando "português". Por quê? Porque vêm de um país culto e ambicioso, onde o estudo do latim, por exemplo, é mil vezes mais praticado do que entre nós.
Os americanos não querem apenas falar a língua deles, a língua que, por sorte deles, todo o mundo fala. Querem desenvolver seu interesse, ou sua cobiça, por outros povos, outros países, sobretudo outras culturas. Querem o mundo. Ou, como o Calígula de Camus, querem a lua, que aliás já conquistaram.
A supressão do idioma francês entre as matérias eliminatórias do Instituto Rio Branco faz parte do atual desamor que o Brasil sente por si mesmo. Estamos nos reduzindo ao mínimo possível, nos anulando, mirrando para termos um mínimo de trabalho e chateação.
Outro dia Moçambique deixou oficialmente de pertencer ao mundo de fala portuguesa. Passou-se, com armas e bagagens, para a Comunidade das Nações Britânicas. Aos poucos, e espero que com menos estardalhaço, acabaremos por encontrar solução parecida.
Na franca e forte introdução que escreveu à sua "Formação da Literatura Brasileira" Antonio Candido escreveu: "...podemos imaginar um francês, um italiano, um inglês, um alemão, mesmo um russo e um espanhol, que só conheçam os autores de sua terra e, não obstante, encontrem neles o suficiente para elaborar a visão das coisas. (...) Se isto já é impossível no caso de um português, o que se dirá de um brasileiro? A nossa literatura é galho secundário do português, por sua vez arbusto de segunda ordem no jardim das Musas... (...) Comparada às grandes a nossa literatura é pobre e fraca. Mas é ela, não outra, que nos exprime. Se não for amada, não revelará a sua mensagem, e se não a amarmos ninguém o fará por nós."
Ou só passaremos a lê-la quando ela merecer e ganhar boa tradução inglesa. Pelo rumo que vão tomando as coisas, o português, entre nós, vai virar língua de pobre, de favelado. As pessoas "bem", falarão inglês. Moçambique é nosso líder.

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