São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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Dornbusch receita inflação e crescimento

CELSO PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

Economista ataca obsessão por combate a preços e defende gastos com social e ajuste no setor público

O presidente Fernando Henrique Cardoso deveria esquecer a obsessão por uma inflação ainda mais baixa e lançar um projeto nacional, unindo resgate da área social e ajuste fiscal, que permitisse fazer o país voltar a crescer 7% ao ano.
Deveria haver alguma desvalorização cambial -não uma maxi- e indexação do câmbio à inflação, para dar competitividade às exportações. A taxa de inflação poderia subir um pouco, mas e daí?
"O Chile teve inflação de 25% ao ano durante sete, oito anos, antes de cair abaixo de 20%, e 7,5% de crescimento anual", lembra o economista Rudiger Dornbusch, em entrevista à Folha. "Qualquer política no Brasil que seja incompatível com taxa média de crescimento de 7% ao ano está errada", diz ele.
Dornbusch, professor do Massachussets Institute of Technology (MIT), em Boston, é considerado um dos mais importantes economistas contemporâneos.
Assessor de governos latino-americanos, ele ajudou a formar no MIT uma geração de economistas envolvidos com a estabilização: o ex-ministro mexicano Pedro Aspe, o ministro argentino Domingo Cavallo, o ex-presidente do Banco Central Pérsio Arida e o ex-diretor do BC André Lara Resende.
Reforçou seu prestígio recentemente ao ser a única voz internacional de peso a prever, um ano antes, o colapso da economia mexicana. Ele não acha que o Brasil enfrenta qualquer crise iminente.
Mas ela virá, se a rota não for alterada. E ele acha um desperdício o presidente não mobilizar o país em torno de um projeto nacional que unisse a bandeira social com o ajuste fiscal e do Estado. Para isso, teria que se livrar da agenda única do combate à inflação e engajar sua equipe no novo projeto.
*
Folha - O Brasil controlou a inflação, mas a taxa de crescimento ainda é baixa. Como resolver isso?
Rudiger Dornbusch - O crescimento é propositadamente baixo. Os juros foram elevados para segurar a inflação. O país ainda luta contra a inflação bem depois de ter vencido a guerra e falhou ao não completar a estabilização e buscar uma política de crescimento.
Folha - Algumas pessoas diriam que antes que a inflação tenha chegado ao nível dos países desenvolvidos, a luta não deveria parar, pois o país poderia perder sua competitividade a médio prazo...
Dornbusch -Isso é o que eles falavam no México...
Folha - O sr. acha que o Brasil poderia ir pelo mesmo caminho?
Dornbusch - Não quero dizer isso. O Brasil é grande, pragmático, voltado para dentro. Vocês não vão em direção a um desastre como o mexicano. Mas é totalmente estúpido focar a inflação como se isso fosse a única coisa importante.
Vocês precisam de crescimento para sair da pobreza, avançar. Lutar contra uma inflação como a do Brasil de hoje é falta de imaginação.
No Chile, onde o crescimento foi fantástico nos últimos 10 anos, ninguém se preocupa com isso. É preciso manter a inflação baixa, mas o Chile deixou de lado esta tentativa de atingir níveis mundiais às custas do crescimento e foi ótimo. O objetivo é obter o máximo de crescimento sem risco inflacionário, e não subordinar toda a economia ao desempenho da inflação.
Folha - Como conseguir crescimento sem inflação no Brasil?
Dornbusch - O Brasil tem que completar a estabilização. O genial da estabilização foi ter se livrado da inflação sem qualquer trabalho sobre as contas públicas e quase nenhum esforço importante de privatização -e isso falta fazer. Além da reforma mais ampla do Estado, com a descentralização e a construção de instituições adequadas.
Folha - E a taxa de câmbio? A moeda está sobrevalorizada?
Dornbusch - Sim, no sentido de que o setor exportador é o motor propulsor da economia. Onde mais poderia estar o motor? No pagamento de juros pelo governo?
Este é o tipo errado de crescimento. Uma indexação do câmbio à inflação e, possivelmente, uma pequena desvalorização real, como parte de reformas amplas, seriam altamente desejáveis. Não acho que uma maxi seria uma boa idéia. Ganhar um pouco no câmbio, de forma pragmática, seria a resposta.
Folha - Quando fazer isso?
Dornbusch - Quando um pacote de reforma fiscal e de privatização for lançado.
Folha - Por que o sr. acha que as privatizações caminham de forma mais lenta do que deveriam?
Dornbusch - Acho que o presidente se fechou no programa de baixa inflação. Falta uma visão do que fazer com o Brasil e desenvolver seu próximo projeto. Ele esqueceu a razão pela qual é presidente. Tem a oportunidade de desenvolver um projeto e legitimar a reforma fiscal e a privatização.
O ex-presidente mexicano, Carlos Salinas, foi brilhante ao dizer que precisava do dinheiro para os pobres -e usou para os pobres.
No Brasil, onde sempre existiu a tendência de haver um projeto nacional, surpreende ver que ele não existe hoje. Talvez as pessoas estejam cansadas do governo.
Folha - O sr. está dizendo que FHC parou no combate à inflação e não conseguiu colocar nada mais importante sobre a mesa?
Dornbusch - Ele não ofereceu um programa nacional que poderia facilitar a legitimação da reestruturação do governo, o equilíbrio orçamentário e a privatização. Ninguém gosta de fazer estas coisas. Você precisa de uma desculpa. Uma desculpa seria a explosão de uma crise, mas por que esperar uma situação extrema? Outra é desenvolver um projeto nacional, onde estas medidas são parte dele.
FHC tem imaginação, as pessoas necessárias. Por que não fazer isso, em lugar de entrar, prematuramente, na discussão da reeleição?
Folha - O governo argumenta que um aumento de produtividade poderia tornar as exportações mais competitivas, sem mudar a política cambial. O sr. concorda?
Dornbusch - Não acho inacreditável. Mas a Argentina usa o mesmo argumento e até agora não foi suficiente. E o Brasil nunca foi tão ineficiente quanto a Argentina.
Folha - Quais os riscos de tentar corrigir a taxa de câmbio sem corrigir o lado fiscal?
Dornbusch - Seria perigoso. Elevaria a taxa inflacionária sem nada de bom do outro lado. Se a inflação sobe, a pergunta seguinte é o que fazer com o câmbio. Acho que isso levantaria mais questões do que respostas. Seria terrível.
Folha - Corrigir o câmbio e fazer um ajuste fiscal exigiria uma desaceleração da economia?
Dornbusch - A expectativa é de que o Brasil cresça 7% ao ano. Qualquer política incompatível com um crescimento de 7%, em média, é errada. Um país que diz que não pode crescer mais do que 3% está sendo mal administrado. Com um pacote fiscal pode haver crescimento: deixe o setor exportador criar o "boom". O Brasil deve e pode crescer a 7% ao ano.
Folha - Não seria preciso desacelerar a economia?
Dornbusch - Não. Se você tiver uma taxa de câmbio indexada, uma inflação de 25% ao ano não vai matar o Brasil. O Chile teve inflação de 25% ao ano por sete, oito anos, antes de cair abaixo de 20%, e 7,5% de crescimento anual. O foco deve ser perguntar por que não é possível crescer a 7%. Quem quer que diga que é "porque estamos lutando contra a inflação", deve ser mandado para o zoológico.
Folha - Muitos políticos gostariam de sua sugestão. Como convencê-los de que, ao mesmo tempo, seria preciso um ajuste fiscal?
Dornbusch - Fazer o que tem que ser feito do lado fiscal é o seguro de que a inflação não sairá de controle. Mas a noção de que um crescimento de 3% é suficiente é assustadora para um país tão pobre quanto o Brasil.
Folha - No ano passado, o Brasil recebeu mais de US$ 30 bilhões de capitais internacionais...
Dornbusch - E no ano anterior, o México recebeu US$ 30 bilhões. São os mesmos US$ 30 bilhões. Só estacionaram em outro lugar. O Brasil pode atrair investimento direto, mas é uma pequena parcela.
Folha - Há o risco de o investidor, de repente, perder a confiança, achar que o país não fez seu dever de casa, e sair, como no México?
Dornbusch - Sou menos pessimista com o Brasil do que fui com o México. O México foi muito ideológico sobre o que não faria: o menor erro acabou sendo uma desilusão. O Brasil escreve seu próprio script. Mas certamente se nos EUA a bolsa tiver uma correção, ondas de choque atingirão o Brasil. Porque tanto dinheiro está aqui, as finanças são mais internacionalizadas, há mais fragilidade.
Folha - Qual o risco disto acontecer nos EUA em 96 ou em 97?
Dornbusch - Prever o mercado acionário é criminoso. Há 20% de chance de a bolsa americana sofrer uma correção e 90% de chance de, se isso ocorrer, atingir o Brasil. Todos sofrerão, até o Brasil. Ninguém vai esperar Nova York entrar em colapso para vender depois.
Folha - Como o sr. vê as reformas que o Congresso está discutindo como parte deste ajuste fiscal que o sr. considera necessário?
Dornbusch - A agenda está correta, mas tem muita conversa. Às vezes fica a impressão de que estas conversas são mais por razões políticas, com pouca coisa sendo feita. Como não há um projeto onde as reformas se colocariam, com apoio popular -e, portanto, pressão sobre os políticos-, obviamente o governo tem dificuldades.
Folha - O sr. acha que FHC desperdiçou sua força política inicial?
Dornbusch - Ele é forte e se colocasse algumas idéias sobre a mesa conseguiria muito entusiasmo. Felizmente o Brasil tem um bom presidente. Baixa inflação e um bom presidente são os ativos. Por que não mobilizá-los? É intrigante ver por que não faz isso. Ele não é preguiçoso, é imaginativo.
Folha - O preço a pagar pela reforma fiscal ainda não é...
Dornbusch - O Brasil está tomando emprestado. Tem suas âncoras. Paga juros gigantescos por empréstimos para segurar a inflação. É uma ilusão imaginar que tudo está feito. O país está acumulando uma enorme dívida e isto será um obstáculo para fazer outras coisas mais à frente. Quanto mais esperar, maior será o obstáculo.
Folha - Quão perigosa pode ser a fragilidade dos bancos, com a queda da inflação?
Dornbusch - Taxas de juros altas matam qualquer sistema bancário, mais ainda quando há outras fragilidades no balanço, se a fiscalização é ruim, se o sistema tem "passivos políticos".
Folha - Este é o caso do Brasil?
Dornbusch - Certamente. O Banco do Brasil é um monumento ao Estado. Os egípcios têm suas pirâmides, vocês têm o BB: 500 andares cheios de maus empréstimos. É um dinheiro enorme, que poderia construir escolas para todos. Não é só má decisão de como gastar. Alguém está pagando.
Folha - O que fazer na hora da crise? Deixar bancos privados quebrarem? Há um risco sistêmico?
Dornbusch - Em qualquer sistema bancário existe um risco sistêmico se as pessoas acham que os bancos não estão seguros. Uma avaliação realista dos estragos, intervenções preventivas, quando as cáries são muito grandes, estes são os primeiros passos. Depois, pode-se criar um sistema como o da Argentina, onde problemas menores podem ser resolvidos dentro do próprio sistema bancário. A prevenção é o mais importante.
Folha - Seria perigoso cortar os juros, com a atual situação fiscal?
Dornbusch - Acho que seria um problema. Não se deve mover só uma peça, mas colocar todas juntas. Cortar fora uma perna para ver se a mesa vai cair é perigoso.
Folha - Mesmo reformas agudas não parecem obter consenso...
Dornbusch - Ninguém jamais entra em dieta porque acha que é uma boa idéia. Alguns entram porque viram outros sofrerem ataque do coração. Foi o que ocorreu com o México e não aconteceu nada no Brasil.
É previsível que, sem uma crise maior, o Brasil não caminhará, a menos que o presidente tenha um projeto e diga que precisa da estabilidade para tocá-lo. Tem que articular o Congresso. Você pode pedir um imposto marginal de 50% ao Congresso se disser que é para financiar o gigantesco déficit social na educação e na saúde, que não consegue financiar na atual situação fiscal e do setor estatal.
O projeto teria que ser social e de desenvolvimento do setor privado. Não é revolucionário, comunista ou maluco. É só o que você tem que fazer se não quiser ficar para trás, com crescimento de 3%, estagnado em termos "per capita". As condições não permanecerão ideais nos próximos anos. É uma boa razão para mudar.
Folha - Alguns dizem que é preciso lutar contra a inflação devido aos anos de convivência com ela...
Dornbusch - É uma falta de imaginação. O Chile conseguiu crescer a mais de 7% com inflação de 25%. Realmente não é tão importante. É errado dizer que a inflação precisa ser do nível americano antes de parar de lutar contra ela. Todos que fizeram isso acabaram crucificando a economia. Quanto maior o tempo sem crescimento, mais fraca fica a economia, o orçamento, o investimento. É como o Bundesbank (banco central alemão): a inflação é de 1,5% ao ano e eles continuam preocupados -e a economia está morta.
Você não pode esperar que alguém que fez sua carreira lutando contra a inflação mude de emprego. É preciso mudar a mentalidade para um novo projeto e colocar sua equipe nessa direção.
Deveria ser dado ao Gustavo Franco (diretor do BC) a Ordem do Cruzeiro do Sul e deixá-lo ir para o setor privado. Algo para liberar a agenda de ter um único item: a luta contra a inflação. Não quero atacar Franco pessoalmente. É que ele personifica esta posição.
Folha - Mais especificamente, como deveria ser este novo projeto?
Dornbusch - A educação no Brasil foi negligenciada de forma desastrosa. Na Ásia eles deram uma fantástica atenção à educação, à tecnologia. O "gap" está aumentando para o Brasil.
Esta é uma grande agenda, onde o orçamento público desempenha um papel enorme, pois há grande ceticismo sobre a possibilidade de o setor privado fazer isso.
Folha - Até onde pode ir a dívida pública, sem sérios problemas?
Dornbusch - Bem longe. Mas as pessoas, no final, vão se perguntar aonde o dinheiro está indo, a razão para o Brasil estar se endividando.
Emprestar para adiar problemas é ruim. Em algum ponto as pessoas ficarão preocupadas com datas onde poderão surgir más notícias, como uma eleição com candidatos errados. A história da dívida no Brasil não é encorajadora.
As pessoas querem receber adiantado por possíveis más notícias futuras. O Brasil pode se endividar por longo período, mas é loucura. Pode ter US$ 56 bilhões em reservas, mas de onde vêm? Não de superávit em conta corrente e não são investimentos diretos.

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