São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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Hemodiálise faz da morte rotina em PE

AURELIANO BIANCARELLI

AURELIANO BIANCARELLI; FABIO GUIBU
ENVIADO ESPECIAL A CARUARU

96 vítimas esperam sobreviver à Semana Santa depois que 30 morreram desde o Carnaval devido à intoxicação

A cidade de Caruaru, no agreste de Pernambuco, entra na Semana Santa com uma fila de 96 doentes esperando a crucificação; 52 deles estão internados em hospitais de Caruaru e de Recife. Outras vítimas da "tragédia da hemodiálise" ainda conseguem se arrastar para as sessões de "máquina" três vezes por semana.
Maria Sueli Silva Bezerra, 35, tem a barriga inchada, a pele amarela e nenhuma esperança de sair viva da cama número 11 que ocupa na enfermaria do hospital São Sebastião, em Caruaru.
"Vim com os meus pés, acho que volto pelos pés dos outros", afirma. Sueli, o marido e um filho doente largaram a roça e se mudaram para um quartinho na cidade na esperança de se manter viva pela hemodiálise. Pode ser mais uma das suas vítimas.
Carnaval
A primeira morte por intoxicação aconteceu na terça-feira de Carnaval, 20 de fevereiro. Entrou a quaresma e as mortes não pararam mais. As vítimas fatais do IDR, o Instituto de Doenças Renais de Caruaru (130 km de Recife), já eram 30 até a manhã de ontem.
Até agora, ninguém sabe o que causa as mortes. Os pacientes foram intoxicados por uma substância química até agora não identificada. Os 120 litros do banho da hemodiálise que deveriam lavar o sangue dos pacientes, envenenaram seus fígados.
Os doentes estão morrendo de hepatite tóxica, uma necrose das células do fígado para a qual não há medicação específica.
A doença, admitiu o secretário de Saúde do Estado, Jarbas Barbosa, não tem como ser controlada.
A Secretaria de Saúde suspeita que uma substância tóxica contaminou a água utilizada no processo de filtragem do sangue dos pacientes entre os dias 13 e 17 de fevereiro.
O responsável pela água da cidade se chama Judas Tadeu Alves de Souza. Nada a ver com o personagem bíblico que traiu Cristo.
O Judas de Souza de Caruaru, 40, tem endereço certo, três filhos e nenhum problema de consciência. "Ha 25 anos distribuímos a melhor água da região", diz Souza, gerente regional da Compesa, a companhia estatal de distribuição de água de Pernambuco.
Culpados
O delegado Flávio Torreão, que preside o inquérito policial, tem nas mãos o caso mais dramático do agreste. O delegado nunca esteve diante de tantos mortos e de culpados tão difíceis de encontrar. Para ele, errou quem distribuiu e quem não tratou a água como se devia: o Estado e o IDR, onde os pacientes se intoxicaram.
O IDR foi fechado pelo Secretaria da Saúde e os doentes transferidos para o Inuc-novo, como é chamado o instituto de Nefrologia e Urologia de Caruaru. Os donos do Inuc são os mesmos do IDR.
O prédio do novo instituto ainda está sendo acabado. Na sala de espera pacientes evitam dizer que passaram pelo IDR. "É como dizer que a gente está condenada a morrer", diz Maridete de Oliveira da Silva, 40, que chora ao lado do pai antes de embarcá-lo na ambulância que vai levá-lo a Recife.
O pai Manoel Belo da Silva, 65, carrega uma sonda ligada a uma bolsa para a urina e se apóia numa bengala. Faz um sinal de positivo com o polegar. Manoel parece cumprir a sina dos silvas. Entre os 30 que já morreram, 8 eram Silvas. Entre os 52 internados, 20 têm Silva no sobrenome.

Colaborou FABIO GUIBU, da Agência Folha

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