São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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Privatizações: no Brasil e no mundo

FERNANDO PERRONE

Quem acompanha pela imprensa o programa de privatização do governo pode facilmente diagnosticar a ciclotimia das notícias. As privatizações estão lentas, afirmam os críticos à direita. O governo é açodado, retrucam à esquerda. Entretanto, uns e outros jamais apresentam argumentos consistentes para comprovar sua posição. Restringem-se a exigir maior rapidez ou cautela.
Talvez seja um sinal de avanço o fato de que as críticas inicialmente iam de preços subavaliados, entreguismo, desnacionalização à corrupção. Hoje, esses argumentos mais emocionais perderam terreno e se restringem à monocórdia lentidão versus açodamento.
No governo Itamar, o Programa Nacional de Desestatização (PND) foi esmiuçado pelo Congresso, por meio de uma CPI, constituída a partir de iniciativa de líderes do próprio governo. Nada foi apurado em detrimento do programa.
O TCU, por sua vez, vem fiscalizando cada um dos processos de privatização, sem que, até hoje, tenha identificado qualquer irregularidade. A Justiça também tem sido acionada em cada privatização realizada, sob alegações de diversas irregularidades, sem que tenha encontrado qualquer razão para impedir as vendas.
Tais fatos, somados ao inquestionável sucesso obtido, respondem pela redução do universo das críticas. O ritmo da execução do programa tem, entretanto, permanecido sob constante questionamento.
Cada vez que se desencadeou o processo de privatização de uma empresa -como recentemente, nos casos da Escelsa e da Vale do Rio Doce-, a ação do governo foi classificada, por algum crítico, como açodada. No primeiro caso, o marco regulatório ainda não estaria pronto; no segundo, não existia proteção para o imenso patrimônio mineral.
No extremo oposto estão as críticas à lentidão do programa. Não obstante, fora o Leste Europeu, onde a absoluta falência do modelo baseado no Estado onipresente precipitou um processo de privatização a qualquer preço, o programa brasileiro tem sido o mais rápido. E isso sem detrimento de uma legislação que possibilita os cuidados necessários e o respaldo para as decisões do Executivo.
É oportuno, portanto, avaliar o desempenho do programa vis-à-vis experiências análogas. Só assim a avaliação da rapidez ou lentidão do PND poderá basear-se em critérios comparativos.
Primeiro, observe-se que, em todo o mundo, as privatizações foram mais lentas no primeiro semestre de 1995 em relação ao período anterior (US$ 18,4 bilhões contra o recorde anterior de US$ 37 bilhões). Analistas no exterior apontaram a inadequação dos mercados de capitais como uma das principais razões desse desaquecimento, embora identificassem um número significativo de operações no prelo para o segundo semestre.
No Brasil também foi assim. Com a crise do México, os mercados de capitais latino-americanos sofreram muito, com queda nas cotações das ações e no seu nível de liquidez. E isso provocou uma retração de potenciais investidores. Ações da carteira do PND, como Cosipa e Copene, que poderiam ter sido alienadas em 1995, sofreram quedas substanciais de preço, tendo-se optado por aliená-las em momento de mercado mais favorável.
Uma avaliação rigorosa da velocidade do processo exige uma visão global do andamento do programa, que, após a conclusão de setores industriais inteiros, encontra-se na fase da privatização de serviços públicos de infra-estrutura.
No Reino Unido, berço da desestatização, a reestruturação do setor elétrico ocorreu em 1988, iniciando-se o processo com a venda do controle de várias empresas no ano seguinte, e permanecendo o governo com 40%. Apenas sete anos mais tarde -1995-, concluiu-se a privatização plena, com a venda dos 40% restantes.
O Chile, país pioneiro do movimento na América Latina, gastou de 1978 a 1990 para completar seu modelo elétrico. A Argentina iniciou a privatização do setor elétrico em 1991, com a definição do marco regulatório, e até hoje não a concluiu.
No setor ferroviário, as experiências internacionais podem ser classificadas em dois modelos: um no qual o Estado recupera antes de privatizar; e outro, no qual a ferrovia é privatizada no estado em que se encontra. Estados Unidos, Japão e Nova Zelândia são exemplos do primeiro grupo: Argentina e Reino Unido se incluem no segundo.
Na experiência norte-americana, foram despendidos 11 anos (de 1976 a 1987) para que o governo procedesse a reestruturação das diversas ferrovias privadas, que estavam à bancarrota, agrupando-se sob a denominação de Conrail. Em seguida, investiu US$ 10,3 bilhões (preços constantes de 1985) e, em 1987, por meio de oferta pública, vendeu 85% do capital por US$ 1,6 bilhão.
No Japão, o início do processo data de 1981, mas só em 1983 foi criada a JNR Reform Commission. Apenas em 1986 o Parlamento decidiu pela privatização da JNR (Ferrovias Nacionais do Japão), procedendo-se a reestruturação do setor mediante a divisão da JNR em novas empresas, cujas atividades tiveram início em 1987. O processo de privatização foi interrompido em 1992, devido às condições adversas do mercado, com apenas uma companhia desestatizada. Curiosamente, também foram gastos 11 anos para a venda de apenas uma empresa. Em 1996, ainda falta muito para sua conclusão.
A Nova Zelândia deu início ao processo de privatização em 1982 e, em 1983, acabou com a reserva de mercado. Em 1990 criou a New Zealand Rail Ltd. e em 1993 vendeu a empresa em concorrência pública. Mais uma vez, 11 anos!
Entre os modelos ferroviários que não empreenderam a reestruturação prévia à transferência ao setor privado, o caso argentino é comparável ao nosso. A Lei de Reestruturação do Estado, de 1989, constitui o marco inicial da privatização. As primeiras propostas para licitação foram aceitas ao final de 1992, transcorrendo grande período para que as novas operadoras assumissem as primeiras malhas resultantes do desmembramento da Ferrocarriles. Passados seis anos, o processo encontra-se inconcluso, faltando a malha de Belgrano.
No Reino Unido, a privatização da British Railways teve início em 1982. Em função de sua enorme complexidade, apenas em 1992, com a edição do White Paper, foram definidas as condições do modelo de "open access". A privatização encontra-se em curso, com a transferência de algumas atividades ao setor privado.
Nas telecomunicações, os principais exemplos são, na América Latina, o Chile, onde o processo começou em 1980, para concluir-se dez anos mais tarde; o México, que levou nove anos -de 1983 a 1992; e a Argentina, onde a reestruturação teve início em 1989, o controle das duas empresas estatais foi vendido em 1990 e os 40% restantes em 1992, mediante oferta pública. No Japão, foram necessários sete anos, de 1981 a 1988, período idêntico ao consumido no Reino Unido, de 1984 a 1991.
A privatização é, portanto, um processo bastante complexo em todo o mundo. Por isso, demanda extremos cuidados, ética e transparência. Essas são as características mais marcantes do Programa Nacional de Desestatização (PND). Elas são mais decisivas, do ponto de vista do interesse público, do que um diagnóstico de rapidez ou lentidão pouco informado sobre o que acontece nos outros países.

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