São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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A distância do olhar

SIMON SCHAMA
ESPECIAL PARA "THE NEW REPUBLIC"

Nunca confunda a vida com a arte, especialmente na Holanda, onde a tentação de fazê-lo é grande. As pessoas que visitam a deslumbrante exposição das obras de Vermeer na National Gallery, em Washington (atualmente em Haia, na Holanda) podem se imaginar transportadas para um eliseu burguês: um paraíso de bênçãos cotidianas, fechado entre paredes de tijolinhos, banhado pela luz úmida do sol, onde cidadãos vestindo roupas graciosas desempenham delicados rituais de flerte ao lado de móveis pesados, e onde o som mais rude é o arranhar de uma pena de ganso: "luxe, calme, et volupté".
Mas Jen Vermeer não passou sua vida dentro de um cubo de luz. Viveu boa parte de seus dias nos quartos de fundo de uma estalagem na praça do mercado de Delft, ao lado de sua mulher Catharina Bolnes, a mãe desta, Maria Thins, e (pelo menos) 11 filhos, lutando para completar sua cota anual de dois quadros, que manteriam seus muitos credores afastados por mais um tempinho.
Quando o entusiasta por arte Balthasar de Monconys visitou Vermeer em 1663, na esperança de ver alguns de seus trabalhos, foi enviado à casa do padeiro local, com o qual o artista deixara uma obra consignada em troca de pão. Depois de ver o quadro, o único comentário de Monconys foi que em sua opinião o preço cobrado por ele havia sido excessivo. E embora Vermeer tenha conseguido banir cada um dos 11 filhos de seus quadros, é pouco provável que sua presença em sua casa tenha garantido um ambiente de tranquilidade. O inventário de suas posses traçado após sua morte, em 1675, menciona cadeiras, berços e camas espalhados pela casa -um quadro de Jan Steen, não de Vermeer.
Nada disto significa que devamos imaginar Vermeer como um boêmio desprovido de meios de subsistência. A fortuna de sua esposa e seu próprio pequeno negócio de marchand lhe permitiram manter o ritmo comedido de sua produção, pintando sob encomenda em lugar de reunir um conjunto de trabalhos para oferecer no mercado. E ele era suficientemente bem visto, pelo menos em sua própria comunidade, para ter sido eleito quatro vezes chefe da corporação de artistas de St. Luke.
Mesmo assim, como aponta Michael Montias, em cujas pesquisas pioneiras de arquivos se baseia nossa compreensão histórica de Vermeer, sua eleição para o cargo se deveu menos a qualquer reconhecimento de sua preeminência do que à escassez de candidatos alternativos. Em meados dos anos 1660, quando Vermeer se encontrava no auge de suas forças, a maioria dos pintores de ambição e talento -Gerard Houckgeest, Pieter de Hooch, Christiaen van Couwenbergh e Emmanuel de Witte- ou havia deixado a cidade ou iria deixá-la pouco depois.
Comparado com a elegância refinada de Haia, o dinamismo a todo vapor de Amsterdã ou a agitação marítima precoce de Roterdã, Delft era um fim de mundo semi-arruinado, sonolento, eternamente tirando partida de seus vínculos com Guilherme o Silencioso. Em 1654 o depósito de pólvora do arsenal dos Estados da Holanda explodiu, destruindo boa parte do centro e nordeste da cidade (foi por essa razão que Vermeer pintou sua "Vista de Delft" desde o sul), matando, entre dezenas de cidadãos, o pintor largamente visto como o maior gênio de Delft, Carel Fabritius. Apenas parcialmente recuperada da calamidade, Delft se transformava numa cidade de um negócio apenas (panelas, é claro), com pequenos resquícios de suas indústrias antigas, cervejaria e tapeçaria; um lugar sem teatro, com pouca música, um patriciado calvinista conservador que ainda obrigava católicos como Vermeer e sua família a fazer suas devoções em capelinhas escondidas no exíguo "Canto dos Papistas".
Mas não procuramos Vermeer em busca de história social ilustrada. E embora, graças a Montias, saibamos muito mais sobre o ambiente em que viveu, a personalidade do artista continua mergulhada em sombras profundas. Boa parte da documentação existente diz respeito a dívidas, contratos de casamento e testemunhos registrados em cartório. Em seu ensaio para o catálogo da exposição, Ben Broos precisou fazer milagres de silogismo para estabelecer elos decisivos entre Vermeer e alguns de seus contemporâneos culturais importantes, como Constantijn Huygens. Existe um único e fascinante documento sobrevivente no qual o artista se arrisca a fazer uma avaliação especializada numa disputa entre o marchand Gerrit e seu cliente, o Eleitor de Brunswick (um dos príncipes alemães qualificados para eleger o imperador do Sacro Império Romano-Germânico), relativa à qualidade de uma lote de quadros. Vermeer os considerou sem valor algum, e com isso, sem dúvida, ajudou a afundar a fortuna de Uylenburgh, já cambaleante.
Mas na maior parte do tempo Vermeer está ausente do cenário, especialmente de seus próprios quadros. Incontáveis outros mestres holandeses -incluindo alguns a quem Vermeer conhecia, como Gerard ter Borch, Carel Fabritius, sem falar no professor de Fabritius, Rembrandt, em Gerard Dou, Jan Steen e o "pintor fino" Frans van Mieris o Mais Velho, que se vestiu de espalhafatoso cetim dourado para chamar a atenção do espectador impressionado- se mostraram ansiosos por oferecer auto-retratos, muitas vezes no ato de pintar. Vermeer, pelo contrário, era quase perversamente recatado.
Em duas de suas mais sofisticadas afirmações acerca de sua prática, Rembrandt (em seu enganosamente despretencioso pequeno painel de 1629 no Museu de Belas Artes de Boston) e Velásquez (em "Las Meninas") se dão a muito trabalho para mostrar ao público o rosto mediador do artista criativo, enquanto voltam as costas do cavalete para o espectador. No grandioso "Arte da Pintura" (infelizmente ausente desta exposição), Vermeer reverte essas prioridades visuais.
Seu tema -a Fama da pintura neerlandesa, personificada alegoricamente na figura de Clio com trompete e livro na mão e reforçada pelo mapa desenhado por Nicholas Visscher das 17 províncias dos velhos Países Baixos unificados- é anunciado de maneira inequívoca, enquanto o pintor só nos mostra suas costas.
Em uma das obras mais deslumbrantes e elaboradas da exposição, "A Aula de Música", Vermeer dá uma indicação a mais discreta possível de sua presença controladora na cena, por meio de um reflexo das pernas de seu cavalete, num espelho. Encaixado num pedaço minúsculo da tela, por trás do reflexo muito mais proeminente da cabeça do tocador de teclado, o gesto é eloquentemente furtivo.
Essa recusa obstinada em se apresentar, tão rara na pintura holandesa, é uma das maiores dádivas de Vermeer a seus devotos, pois nos obriga a retornar ao ato da pintura em si. E também, incomodamente, coloca obstáculos no caminho de praticamente toda e qualquer abordagem convencionalmente oferecida pela história da arte. É difícil imaginar outro mestre cuja auto-restrição torne prosaicamente supérfluo virtualmente qualquer comentário. Contexto? Quem precisa disso? Análise formal? Ah sim, as linhas ortogonais vão naquela direção. Entendi. Iconografia? Quer dizer que a cobra significa heresia? Não diga!
Qualquer pessoa que compartilhe minha própria alergia às apresentações insossas e prosaicas da obra de Vermeer se sentirá grato pela simplicidade da instalação na National Gallery, reduzida ao essencial.
Estamos tão acostumados a ver as pequenas jóias de Vermeer emitindo seus impulsos de luz intensa desde um canto de uma galeria de museu repleta de obras consideradas correlatas -De Hooch, Metsu, Netscher, ter Borch-, que a experiência de não deparar com nada exceto obras de Vermeer induz uma espécie de intensificação do poder cinético de nosso equipamento ótico. E ela reforça a impressão de que, enquanto um sem-número de pintores holandeses primaram em criar luz de pintura apenas sobre a tela, apenas Rembrandt e Vermeer conseguirem reproduzir a sensação exata da luz que nos encharca.
Mas Rembrandt nos oferece ação iluminada, enquanto a iluminação de Vermeer é a própria ação. A única especialidade cultural distinta ainda remanescente em Delft era a ótica; e a luz de Vermeer é a coisa que mais se aproxima de uma transcrição da teoria ótica do século 17, que imaginava a luz não como propriedade passiva e sim como uma força ativa que se deslocava, em raios, de superfícies luminosas em direção à inteligência organizadora do olho.
Hoje em dia é comum insistir que Vermeer era um mágico consciente do fato, um especialista em show de luzes, que, por mais que conhecesse e respeitasse as leis da ótica, se dispunha tranquilamente a dobrar os raios dela a suas manipulações estéticas e psicológicas próprias. Sua conquista paradoxal foi fazer com que alguns dos mais inspirados de seus efeitos luminosos fundissem as extremidades lineares do mundo material numa visão atmosférica de sua própria criação. E, nesse sentido, o que nos parece, à primeira vista, um brilho surreal, serve para velar, em lugar de expor, a medida empírica das pessoas e das coisas. Todos aqueles mapas não são a chave ao conceito que Vermeer fazia de visualização do mundo material; são o desafio plano, diagramático a seus poderes de criação.
Assim, olhamos um cordão de pérolas, um pote de barro para água, uma gota úmida pousada na parte interna de um lábio rosado, e vemos todas essas coisas com brilho, através de um vidro, mas sua aparente claridade não as torna menos inatingíveis. Vermeer nos provoca, às vezes impiedosamente, com a distância intransponível existente entre a visão e a possessão; com a qualidade fugidia, desobediente da memória visual; coisas captadas numa explosão de luz estonteante e depois perdidas outra vez, na impaciência indiferente do tempo. É por isso que ele chamou a atenção de Proust, e é por isso que nos atinge em cheio.
A pronunciada aversão de Vermeer à linearidade definida esteve presente virtualmente desde o início. Seu belíssimo "Diana e Suas Amigas", de cerca de 1655, já violava a maioria das convenções que se esperava dos aspirantes a pintores históricos. Alguns anos mais tarde, Vermeer parece haver abandonado completamente os quadros históricos, mas "A Ruela" não era, tampouco, uma paisagem urbana corriqueira. É aquela "straatje" diminuta, o formato relativamente modesto e que foi, em sua maior parte, um retrato fiel das casas ao longo da Voldersgracht que Vermeer provavelmente via de sua janela, que levou esta "tour de force" a ser tratada como prelúdio modesto ao mais retoricamente espetacular "Vista de Delft". Não há dúvida de que o sujeito ostensivo é o tipo de coisa feita de maneira mais simples e repetida por Pieter de Hooch e o misterioso Jacobus Vrel. No entanto, sob o pretexto de mostrar um exemplar da vida da rua, Vermeer se lançou em uma experiência de ordenamento espacial que, em sua ousadia, é proto-abstrata.
Seu ponto de partida é a divisão longitudinal do espaço do quadro em pouco menos de um terço de sua profundidade. A linha marcada pela fachada da casa, com sua janela central em arco, de arquitetura excêntrica, e suas paredes irregularmente caiadas continuando até a casa de venezianas azuis que surge abruptamente à esquerda, constitui, em efeito, um segundo plano no quadro, paralelo ao plano original. E é esse plano, separando o espaço profundo, que Vermeer passa, então, a perfurar com recessões e aberturas de profundidade irregular, ou às quais prende projeções rasas como os bancos ou, em tom mais doce, o lado de trás de uma garota de saia amarela, brincando com ossinhos na rua quadriculada. O espantoso contraponto dessas aberturas e fechamentos, enriquecido com as alternações de cor, calibradas com precisão, é o que confere ao quadro (diferentemente da cena em si) sua energia tagarela.
Pois tudo que esse quadro não é, é "silencioso". Ele salta para frente e para trás, percorrendo a linha agressivamente marcada da perspectiva, enquanto o movimento agitado é mantido em ordem pelas diagonais fortes e sólidas da linha de telhado em cumeeira, à esquerda. Trabalhando em dísticos visuais perfeitamente ritmados, o quadro emparelha janelas, portas, crianças, as duas moças de pé e sentadas; o rosto desta última de algum modo transmite concentração com seu trabalho de costura, apesar de quase não passar de uma pincelada cor-de-rosa casual.
Mas a mais elaboradamente casual destas imagens gêmeas reúne a porta negra arqueada do centro esquerdo com a vista apresentada através da porta seguinte, de uma criada diante de um barril de água. Pois o arco negro, ostensivamente fechado, é pintado com grande cuidado para sugerir uma abertura, enquanto a vista para a passagem estreita parece inesperadamente desinteressante, em descontinuidade com o primeiro plano. Em outras palavras, isso lembra bem mais o território de Mondrian do que o de Pieter de Hooch. Como o mestre explicitamente abstrato, Vermeer visava a intemporalidade -mais urgente pelo fato de a demolição da fileira inteira de casas já haver sido programada, como realmente aconteceu após a explosão de 1654.
A hora é a manhã, momento da redenção de mais um dia. A luz do sol vem do leste para partir nuvens que têm o formato das asas de um anjo escuro, ou que são separadas retoricamente (como em outros quadros de Vermeer) como uma cortina pesada, para revelar o santuário interno da cidade, a torre da Nieuwe Kerk, lugar de descanso do mártir William, concentrando a radiância mais intensa. O panegírico feito por Dirck van Bleyswick à cidade, que incluiu um poema de Arnout Bon lamentando a morte de Fabritius mas louvando Vermeer como seu sucessor legítimo, foi publicado alguns anos após esse quadro, mas a imagem da Fênix renascida, como outros milagres sagrados, da pira, já era corriqueira.
Enganosamente destituído de excessos, o quadro de Vermeer é, na realidade, repleto de alusões e citações, das quais a não menos importante dizia respeito ao epítome dos quadros topográficos de cidades holandesas de muralhas fortalecidas e retratadas com simplicidade, o maravilhoso "Vista de Zierikzee", de Esaias van de Velde (1617), do qual Vermeer com certeza adotou o "repoussoir" da margem arenosa do rio.
Mas havia, também, exemplos mais próximos tirados de sua própria cidade: a vista pintada por Hendrik Vroom de uma Delft mais simples, e várias versões mais sofisticadas de cidadelas da liberdade vistas por trás de lagos ou rios, como o Valkhof, em Nijmegen, pintado muitas vezes por artistas como Jan van Goyen e Aelbert Cuyp. Vermeer deve haver buscado evocar e superar todos esses precedentes, com uma demonstração virtuosística de todas as habilidades imagináveis de um pintor.
A textura dos telhados vermelhos à esquerda, por exemplo, foi adensada pela mistura de areia com o pigmento, quase como se Vermeer fosse tanto um reconstrutor quanto um criador de imagens. O mesmo ímpeto de perspectiva testemunhado em "A Ruela" é empregado aqui com efeito mais prático. E, embora pareça provável que Vermeer realmente tenha montado uma camera obscura numa casa do outro lado do Schie, sua transferência seletiva de sua imagem não sugere, como argumentou Daniel Arasse em "Vermeer: Faith in Painting" (Vermeer: A Fé na Pintura, Princeton University Press), um artista exageradamente submetido a artifícios.
O que acontece, na realidade, é exatamente o contrário. Enquanto a imagem focalizada projetada sobre a parede de uma sala escura desde um buraco pequeno tivesse sido saudada por pintores como Samuel van Hoogstratem como a transferência objetiva de uma verdade natural, o retrato deliberadamente inapropriado que Vermeer faz de seus pontos de destaque sugere uma réplica a todos aqueles que acreditavam que a imagem mágica tornaria redundante a arte do pintor.
Afinal de contas, produzir a ilusão de superfícies brilhantes de coisas era apenas metade do trabalho de Vermeer. Seus quadros mais espantosos invariavelmente deixam entrever os intercâmbios entre os mundos visível e invisível; entre o imediato das sensações e seu eco contemplativo, interior. É nesse sentido que nossa compreensão da palavra "reflexão", como simultaneamente um efeito de luz e um efeito de pensamento, parece constituir uma caracterização apropriada das mais profundas preocupações de Vermeer. Estranhamente, o único pintor genuinamente talentoso que chegou em Delft depois da maioria dos outros terem abandonado a cidade, o artista de naturezas-mortas Abraham van Beyeren, se interessava pelo jogo dos reflexos, e às vezes oferecia imagens fugidias dele próprio, ou do desenho quadriculado de uma janela refletido numa taça de vinho ou numa tigela de prata.
Na mais misteriosa e sedutora de todas suas obras, aquela que ainda é conhecida como "Menina com Brinco de Pérola", embora a limpeza do quadro tenha revelado o reflexo inferior de um brinco em forma de lágrima, grande e prateado demais para ter nascido de qualquer ostra conhecida, Vermeer recorre a todas suas habilidades para lançar luz sobre a relação entre inocência e desejo. Esteja avisado de que o resultado não possui qualquer relação com qualquer impressão transmitida por reproduções impressas, por mais sedutoras que possam ser, e que exerce o efeito de fazer pessoas fortes sentirem fraqueza nas pernas e pedirem um copo d'água.
Adquirido no século 19 pela soma principesca de dois florins, o quadro tornou-se conhecido, previsivelmente, como "a Mona Lisa holandesa". As duas cabeças possuem uma atemporalidade que o termo "retrato" não consegue descrever adequadamente, mas uma comparação melhor seria com o retrato de Jan Six feito por Rembrandt -em outras palavras, o maior retrato da história da pintura ocidental. Ambos utilizam um fundo negro, especialmente pouco característico de Vermeer, densamente trabalhado, de modo que as cores brilhantes exigidas para avançar de um espaço indeterminado, sugestivamente infinito, podem ser calibradas com precisão para obter vitalidade e projeção máximas. Na figura de Rembrandt, é a capa vermelha fulgurante que realiza o trabalho de "apresentação" do artista ao espectador. Vermeer opta pela peça azul e dourada que cobre a cabeça da figura, de maneira que não se assemelha a qualquer figurino holandês conhecido, mas que absorve luz gentil, suntuosa. Em ambos os casos, o relacionamento precisamente estabelecido entre figura brilhantemente iluminada e fundo escuro conseguem conferir ao sujeito tanto imobilidade quanto animação.
Na criação milagrosa de Vermeer, a luz, originária sabe se lá de onde, preenche o rosto, ele próprio um eco ampliado da jóia, e brilha dos reflexos situados na beirada da íris castanha, executada por Vermeer com um único traço de branco chumbo continuando da superfície da córnea até a beirada das pupilas dilatadas. Modelado com exatidão através do sombreamento mais sutil no lado direito da testa, nariz e maxilar, esse rosto consegue manter uma proporção perfeita, ao mesmo tempo que transmite a impressão nítida de que, a qualquer momento, pode retroceder e dissolver-se outra vez na invisibilidade negra. Só Vermeer poderia haver pintado lábios umidamente entreabertos que sugerem ao mesmo tempo a expectativa de saudar alguém, a consumação e a despedida.
Apesar de toda sua habilidade inigualada em registrar a pungência aguda de coisas iluminadas, vistas e depois abandonadas à escuridão, a arte de Vermeer, diferentemente da de Rembrandt, não é essencialmente trágica. A seu modo, porém, é heróica em sua celebração triunfal dos pequenos prazeres intensamente sentidos. Os momentos de escritura de cartas de amor e olhares sonhadores captados no sussurro de um sorriso são percorridos por um subtom de alegria controlada que Vermeer se permite gritar ao alto na intensidade de suas cores: o amarelo chumbo e resplandescente, o azul ultramarinho precioso, normalmente reservado aos santos e às divindades.
Quem fica parado numa das salas da exposição, entre dois pontos de radiância tão intensos quanto "Mulher com Colar de Pérola" e "Mulher de Azul Lendo uma Carta", sente estranhamente reproduzida a sensação de ser captado numa das mágicas caixas de luz de Vermeer, com imagens espelhadas e pinturas emparelhadas gentilmente se dirigindo umas às outras, através de um espaço iluminado. É difícil imaginar qualquer exposição de 21 quadros mais potente em sua capacidade de atrair o espectador para dentro de seu mundo, de nos inundar de exultação diante do tecido iluminado de nossas vidas, como se estivéssemos num transe. Essa voltagem estética altíssima talvez não baste para iluminar a National Gallery durante seus fechamentos passados e futuros, mas com certeza é mais do que suficiente para transformar descontentamentos invernais em primavera resplandescente.

Tradução de Clara Allain.

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