São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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A tradição do esquecimento

CLAUDIO GARON
ENVIADO ESPECIAL AO RIO

Um dos mais importantes historiadores brasileiros da atualidade, o pernambucano Evaldo Cabral de Mello optou pela história ao perceber que os "livros e a documentação são 20 vezes mais interessantes do que a ficção".
O historiador e diplomata aposentado concedeu esta entrevista pouco antes do lançamento de seu livro mais recente, "A Fronda dos Mazombos - Nobres contra Mascates; Pernambuco: 1666-1715", no qual trata de seu Estado natal no período entre a expulsão dos holandeses (1654) e a Guerra dos Mascates (1711).
No livro, ele mostra os conflitos -as "alternações"- entre os senhores de engenho nascidos no Brasil (os mazombos) e os comerciantes portugueses estabelecidos em Recife, que ao final consolidaram a hegemonia destes.
"A Fronda dos Mazombos" consegue unir a história narrativa e a econômica e social. "É um processo dialético. Você tem uma história narrativa no século 19 que era a tese, você tem a antítese, que foi a história econômica e social, e a síntese, que é exatamente a combinação das duas coisas".
Como exemplo desse processo, ele cita a dimensão narrativa do francês Fernand Braudel, nas suas palavras, o historiador do século 20 que mais tentou "desnarrativizar" a história.
Cabral de Mello, 59, dedica-se atualmente a dois projetos: a reedição de "Olinda Restaurada", seu primeiro livro, de 1975, e uma nova pesquisa, na qual investiga as relações diplomáticas entre Portugal, Espanha e os Países Baixos durante a guerra com os holandeses.
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"A Fronda dos Mazombos" - Stuart Schwartz teve razão quando acentuou que a segunda metade do século 17 constitui um período esquecido na nossa historiografia, comprimida que se encontra entre as invasões holandesas e o ciclo do ouro. No caso específico da história do Nordeste açucareiro, que é minha área de interesse, tentei fazer alguma coisa com a "A Fronda dos Mazombos", mas o principal resta a fazer, com base na rica documentação existente.
Creio que esses anos foram decisivos na percepção de uma identidade colonial no Brasil. As alterações de 1710-1711 representaram o marco inicial da tradição revolucionária que vai desembocar um século depois na revolução de 1817, no movimento de Goiana, na Confederação do Equador e na revolta praieira. É revelador, por exemplo, que no seu livro escrito em 1823, o padre Dias Martins tenha reunido a biografia dos sediciosos de 1710-1711 com a dos revolucionários de 1817, que a seu ver procuraram apenas realizar o que seus antecessores teriam pretendido.

Brasilianistas - Nos anos 60 e 70, era moda no Brasil lamentar-se o fato de que a nossa historiografia estaria sendo colonizada pelos brasilianistas, sobretudo de língua inglesa, com os perigos decorrentes de uma visão deturpada ou alienada, como se dizia. A par de preocupações autênticas embora ingênuas, este tipo de queixas refletia, de um lado, inclinações ideológicas óbvias, e de outro, o temor corporativo com a concorrência em torno das oportunidades de ensino existentes nas universidades brasileiras e estrangeiras.
Nos anos 80, a história brasileira e latino-americana, em geral, perdeu muito do seu interesse no exterior, sobretudo nos Estados Unidos. O fantasma brasilianista, que anteriormente fora encarado como um perigo capaz de esterilizar nossos talentos historiográficos, desapareceu, como por encanto, sem que, infelizmente, esse refluxo se traduzisse no aumento da produção historiográfica nacional.

Ciências humanas - Ao passo que os historiadores brasileiros estavam obcecados com o fantasma brasilianista, seu campo de atividade sofria outro tipo de colonização que eles não enxergavam e, esta, interna: a colonização pelos sociólogos, antropólogos, economistas e cientistas políticos, que se processava sob a justificação ou o disfarce da cooperação multidisciplinar. O resultado é que nos últimos 20 ou 30 anos, a fronteira entre a história e as outras ciências humanas veio praticamente a desaparecer. Existem hoje literalmente profissionais que não sabem muito bem se são historiadores que aplicam métodos sociológicos ou se são sociólogos que trabalham com o passado.
No Brasil, onde o nível cultural é evidentemente bem inferior ao da Europa ou dos Estados Unidos, essa tendência teve consequências arrasadoras, na medida em que destruiu a modesta tradição erudita que havia sido acumulada desde o tempo de Varnhagen e de Capistrano nas nossas bibliotecas e nos nossos institutos históricos, sem substituí-la por algo necessariamente mais sólido.

Historiadores - Obviamente o historiador, como qualquer outro indivíduo, tem suas próprias tendência ideológicas e como não é possível não tê-las, o aconselhável é tratar de submetê-las a uma vigilância permanente.
Dito o que, permito-me pensar que, frequentemente, uma inclinação ideológica mais conservadora é mais propensa à compreensão do passado do que uma inclinação mais à esquerda, embora os historiadores conservadores corram o risco oposto de idealizar o passado.
A grande tradição da historiografia européia não foi a do Iluminismo, que rejeitava o passado, mas a do Romantismo, que o amava. Ninguém pode entender algo que já detesta previamente, e esta é infelizmente a atitude mais encontrada, embora não seja unânime, entre os historiadores de esquerda em todo o mundo.
Não se deblatera contra a história, porque ela é uma coisa passada, irreversível. Há que assumi-la como foi, com o que teve de mau e de bom. Não adianta ficar lamentando a repressão da Inconfidência Mineira ou da fronda dos mazombos ou ficar imaginando o que teria acontecido se uma ou outra houvesse triunfado. O trabalho do historiador não consiste nem em rejeitar o passado nem em idealizá-lo, mas em compreendê-lo.

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