São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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A máquina de criar linguagem

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A nova editora Sette Letras vem se projetando com lançamentos importantes na área de poesia. Além de publicar um ensaio de Flora Sssekind, "Até Segunda Ordem Não Me Risquem Nada", no qual analisa traduções feitas por Ana Cristina Cesar, e "Brinde Fúnebre e Prosa", poemas de Mallarmé em tradução comentada de Júlio Castanõn Guimarães, a editora aposta em novos poetas.
"Entre Nervuras" de Marco Antonio Saraiva, organiza-se em torno das imagens da folha e do pássaro que, desdobrados em séries, tecem o princípio compositivo do livro: a metalinguagem. À medida que avançamos na leitura, somos enredados numa sintaxe vascular, em mosaicos sonoros, em ramificações metafóricas. Trata-se de uma "educação pela folha", de encontrar um lugar na árvore genealógica da tradição poética.
Desde a abertura, folha e pássaro são entalhados metalinguisticamente na "página" e no "canto" que, por sua vez, são empalados nos poemas e estes, embutidos no livro-mosaico: "Daquele pássaro/ pousado nesta árvore/ apenas sobreviveu (deles)/ aquele livro na estante.// - Seu último ninho". Esta operação rege as sete partes do livro.
Em outras palavras, o procedimento de construção dos poemas encontra correspondência na arquitetura do livro. Ao intitular "Entre Nervuras", o poeta revela consciência de sua matéria, acentuando a gênese espacial de sua poética que opta sempre por estar "entre": "O rascunho e a ruína gêmeos no espaço". O léxico é selecionado a partir da busca deste ponto de convergência entre vida e morte: cinza, argila, cicatriz, vírus.
O livro traz um prefácio elogioso de Décio Pignatari e vem acompanhado de um release com comentários de Carlito Azevedo, Antônio Carlos Secchin e Jorge Fernandes da Silveira. Além de assinalarem a maturidade da estréia de Marco Antonio Saraiva, todos apontam a influência de João Cabral. Sem querer discordar, acho que seria útil inquirir sobre a reincidência deste tipo de afirmação, frequentemente empregada para avaliar a produção contemporânea. Penso que falar da influência de João Cabral sobre a obra de poetas jovens está se tornando um lugar comum e pouco produtivo em termos de crítica.
Generalizações desse tipo deixam escapar que dois poetas podem ser influenciados por João Cabral de maneira distinta, atraídos por questões diversas. Em Marco Antonio Saraiva, por exemplo, a ênfase está colocada no rigor construtivista e na depuração da linguagem. Já em "O Livro Diverso", de Bernardo de Mendonça, a lição cabralina é absorvida via as impurezas da prosa e dentro da tradição do romance popular.
Nesse sentido, a originalidade de Marco Antonio Saraiva está na capacidade de revitalizar a engrenagem metalinguística que parecia exaurida. Como afirma Pignatari, tempos atrás houve uma grita geral: chega de poema sobre o poema. Para surpresa de todos, surge "Entre Nervuras", cuja força está em demonstrar que procedimentos e temas só estão esgotados quando falta esforço intelectual.
Ressaltadas as qualidades do livro, penso que um crítico tem obrigação de revelar os movimentos da obra, deve concentrar-se tanto nos pontos altos quanto naqueles que julga mais problemáticos. Coerente com este princípio, quero observar que o texto de Marco Antonio Saraiva muitas vezes esbarra em amaneiramentos prejudiciais ao conjunto. Quando o poeta baixa a guarda, deixa passar versos como "seu sêmen -já semântico-". Até mesmo num bom poema como "Etologia Serpentária", incomoda a redundância sonora do verso inicial: "O ofídio em ofício".
Nessa hora fica claro que a influência cabralina deve ser relativizada. O "programa" de João Cabral é incompatível com o rebuscamento do neo-barroquismo. A sua máquina da linguagem não trabalha com trocadilhos. Reforçando este argumento, na parte mais fraca do livro, "Poliglota de Silêncios (ópis e palimpsestos)", o poema "Guernica" explora aspectos excessivamente melódicos em aberta contradição com os elementos destrutivos e a aspereza quase monocromática do quadro de Picasso. Nem sempre o assunto cede docilmente à forma.

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