São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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A chegada de Apolo aos trópicos

Warchavchik trouxe o vocabulário da arquitetura moderna

AGNALDO FARIAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

No dia 2 de abril comemora-se o centenário de nascimento de Gregori Warchavchik, introdutor da arquitetura moderna no Brasil. Hoje, mais de 70 anos depois de Le Corbusier definir a arquitetura como "o jogo sábio, correto e magnífico dos volumes sob o sol", que nossas fatigadas retinas já não se surpreendem com Brasília, ao contrário, gostamos de criticar a frieza dos vastos espaços concebidos para os automóveis e não para os homens, esta afirmação talvez não nos diga muita coisa.
Também porque é difícil imaginar o que era São Paulo nos longínquos anos 20, quando o neocolonial e o ecletismo de inspiração francesa contrastavam com as edificações feitas sem nenhuma inspiração. Mas é necessário este esforço para compreendermos o alcance desse arquiteto russo, nascido em Odessa, formado em Roma numa escola de arquitetura marcada pelo classicismo monumentalizante, e que aqui desembarcou em 1923, aos 27 anos, trazendo o ideal das vanguardas européias de uma arquitetura capaz de harmonizar o homem com a máquina.
A contribuição de Warchavchik ainda gera alguma controvérsia. A corrente hegemônica da historiografia de arquitetura fixa como marco inicial da arquitetura moderna no Brasil, o ano de 1936, data do início da construção do prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, projetado por uma equipe organizada em torno de Le Corbusier, liderada por Lucio Costa e que tinha Oscar Niemeyer como alguns de seus comandados.
Warchavchik seria então um pré-moderno, um pioneiro da "verdadeira" arquitetura moderna no Brasil. Não é bem assim. Coloquemos cuidadosamente os pingos nos is: Costa e equipe foram, indubitavelmente, os fundadores da arquitetura moderna brasileira. Já Warchavchik foi o introdutor da arquitetura moderna no Brasil. Dito de outro modo, Costa e seu grupo, sobretudo nosso arquiteto maior, Niemeyer, obtiveram um resultado singular, adequado tanto ao clima quanto às preocupações modernistas de busca/invenção de nossas raízes, no trato com o vocabulário plástico da arquitetura moderna que se fazia na Europa. Pois bem, quem trouxe esse vocabulário para cá foi precisamente Warchavchik.
Sem ele a história da nossa arquitetura moderna talvez tivesse sido outra. E basta a análise de sua trajetória pessoal para que se tenha certeza disso. Para materializar seu sonho de injetar modernidade na provinciana e até bucólica paisagem urbana como as que se vê nas telas de Tarsila do Amaral, Warchavchik envolveu-se em todos os níveis da profissão. Num arco que vai do edifício até seu mobiliário, ele projetou, formou seus próprios operários, construiu, incorporou, fez a divulgação e vendeu.
O item divulgação merece uma explicação adicional. Warchavchik não se limitou apenas a bolar anúncios publicitários acerca de seus empreendimentos. Ciente da necessidade e responsabilidade de criar público para sua arquitetura, vale dizer, para a expressão construída de um novo mundo que se avizinhava, em 1925 ele publicou num jornal da colônia italiana, "Il Piccolo", aquele que seria nosso primeiro artigo sobre arquitetura moderna. Após uma versão em português feita no ano seguinte para o "Correio da Manhã", ele acrescentaria no "Correio Paulistano", em 1928, a série de dez artigos "Arquitetura do Século 20".
A coincidência entre o período de publicação desses textos com a construção de sua residência na rua Santa Cruz, nossa primeira casa modernista, revela a estratégia de Warchavchik de esclarecer o público sobre a arquitetura que ele anunciava. Confirmam essa impressão os episódios que envolveram a casa, a começar pela aprovação do projeto, com o arquiteto alegando falta de recursos para justificar a ausência de ornamentos. O fato de ele haver construído artesanalmente itens que a arquitetura moderna prescrevia industrializados, mostra-nos que junto ao esforço de adequação às condições dadas, vinha o entendimento, de resto moderno, que a arquitetura instaura novas ordens de visibilidade, indutoras de novas técnicas.
Sempre no esforço de demonstrar que a arquitetura não poderia ser entendida como uma expressão isolada, mas pertencente ao campo geral da cultura, Warchavchik juntou-se aos nossos modernistas nos debates e na produção de exposições e eventos culturais. O fato de ser concunhado de Lasar Segall seguramente facilitou-lhe esse trânsito, mas sua adesão plena ao grupo seria saudada com a brilhante residência da rua Itápolis (1929/30), inaugurada ao público com uma memorável exposição de arte e mobiliário modernos. Os 20 mil visitantes quedaram-se fascinados diante daquele cubo branco, despojado, cujo equilíbrio era tensionado por um jogo de planos -as lajes frontal e lateral-, que formavam volumes ocos.
O reconhecimento junto ao meio foi naturalmente rápido e teve como ponto de partida sua indicação, por parte de Le Corbusier, para que ele fosse delegado para a América Latina do órgão máximo dos arquitetos modernos, o Ciam (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna). Um degrau mais importante foi o convite para que ensinasse os novos preceitos arquitetônicos, feito por Costa no revolucionário e curto período em que chefiou a Escola Nacional do Belas Artes, ainda em 1930.
Embora distante da preocupação de se forjar uma imagem do Brasil por meio da arquitetura -como seria o caso de Costa e Niemeyer-, e por isso mesmo injustamente eclipsado por uma historiografia que não enxerga o componente ideológico que lhe dá respaldo, com suas obras Warchavchik inaugurou a chegada ao país de um novo pensamento arquitetônico, afeito à luz e à razão, signos da nova era que se instaurava. Contemplá-las, passear por seus contornos exatos, é reviver o desembarque e a surpresa da razão diante da canícula e da claridade desmedidas. É assistir a chegada de Apolo aos trópicos.

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