São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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Os poderes ocultos do fálico Oscar

MIRIAM CHNAIDERMAN
ESPECIAL PARA A FOLHA

"Tristes trópicos que tropicam" (Itamar Assunção). Tropicar pode querer dizer viver os trópicos em sua plenitude ou um trópico que falha, tropeça. "O tratado é intrincado ou a treta frutifica no trambique". Tratado, lei própria ou treta do trambique.
Querendo deixar de tropicar, lá fomos todos nós, representados pela família Barreto, orgulhosos da indicação ao Oscar, para Hollywood. O Brasil parou como nas copas de futebol, o índice de audiência do SBT estourou. A treta americanizou-se, o lobby oficializou-se. A treta pode frutificar sem ser no trambique. Mas, destratar é truque chique, conta Itamar Assunção.
E Sharon Stone despreza a jornalista Marina Moraes quando esta lhe pergunta como se sentiu representando uma prostituta... Destratar é truque chique...
Cordialmente, colocando-se como os salvadores do cinema brasileiro, papai e mamãe Barreto, acompanhados do exitoso filho Fábio e a nora, embarcaram acompanhados das filhas adotadas, Glória Pires e Patrícia Pillar. A família Barreto embarcou para os EUA para salvar o pobre cinema brasileiro.
Todos tentamos reviver o mito da família feliz, na noite feliz... O mito leva sempre à constatação de que a única família feliz está nos presépios ao pé das árvores de natal. Mas, a família feliz Barreto fez reviver de forma viva, encarnada, o mito da família vencedora. Ia receber, por todos nós, o reconhecimento do deus-pai Tio Sam.
Todos que lutam pelo cinema brasileiro, que assistiram e fomos vítimas de sua derrocada nos anos Collor, que batalham por maiores por verbas destinadas à cultura, não podiam deixar de torcer por "O Quatrilho".
Voltava a esperança da não-marginalização, da não-folclorização, a possibilidade de uma resposta à exotização. Como se precisássemos do papai americano para validar nossa produção. E não de qualquer papai americano, mas o papai americano fálico, o tal trofeuzinho fálico.
Na entrega do Oscar, quando chegou o momento em que foi anunciado o melhor filme estrangeiro, não houve quem não se decepcionasse com a frieza e rapidez de Mel Gibson. Não passaram nem um pedacinho de "O Quatrilho"? Glória Pires não apareceu? Onde estão os irmãos vencedores?
Mas, no round internacional da indústria cinematográfica, venceu a Holanda. Tivemos que nos haver com o que é a indústria do cinema, apesar de toda a ida de "O Quatrilho" para Hollywood ter acentuado nosso lado família. Luiz Cláudio Figueiredo (em "Modos de Subjetivação no Brasil", Ed. Escuta), a partir de Roberto da Matta, aponta como em nosso dia-a-dia ora "reinam pessoas", com nomes e histórias, ora "debatem-se indivíduos" anônimos...
A confusão entre o público e o privado ficou escancarada nos depoimentos de Fábio Barreto, no casamento de Bruno Barreto com a primeira mulher de Steven Spielberg, tudo virou um enorme emaranhado. Mas a frieza da indústria do Oscar venceu-nos. E, tropicando, afirmamos que apenas a indicação já valeu. Cordialmente, não há expressão para a revolta.
Com a indicação para o Oscar e o fenômeno de massa produzido, torna-se inevitável perguntarmo-nos sobre o que é o nosso cinema, se ele tem algo de nossa confusa identidade, e de que forma pode encontrar escoamento no mercado internacional.
Como não conseguimos o Oscar, poderíamos pensar como Contardo Calligaris em seu livro "Hello Brasil!" (Ed. Escuta), na afirmação sempre repetida de um fracasso na constituição de uma identidade brasileira, uma falha na possibilidade de simbolização. Calligaris inicia sua reflexão a partir da perplexidade que vive diante da frase, tão comum entre os próprios brasileiros, "este país não presta..."
Quantos por aí, pós-Oscar, não estarão afirmando que o Brasil não tem jeito mesmo... Calligaris cria então duas figuras retóricas para tentar entender o Brasil, a do colonizador e o colono. O colonizador vem impor sua língua, "demonstrar a potência paterna". A busca seria de um gozo ilimitado sem interdição paterna. Afirma Calligaris: "Ele maneja a nova terra como se pode sacudir o corpo de uma mulher possuída, gritando 'Goza Brasil!', e esperando o seu próprio gozo do momento no qual a mulher esgotada se apagará em suas mãos". O colonizador vem para o Brasil atrás de um novo pai que o reconheça: "...Deixar a sua língua materna produzia milagrosamente um documento no qual, por ele ser nomeado, a sua dignidade humana era reconhecida".
É interessante que em "O Quatrilho", como ia trabalhar com a colonização italiana, Fábio Barreto teve que se haver com a questão da língua. No "Roda Viva" contou que os imigrantes falavam seus dialetos italianos, mas que tiveram que criar uma língua que fosse compreensível para o público brasileiro. Um dos aspectos mais criticados do filme foi a esquisitice da língua dos personagens.
Muita gente falou de o quanto o filme ganharia se fosse dublado em inglês. Ou seja, o filme fica melhor se colocado "fora do lugar" por meio de uma língua que não é nem a do colonizado nem a do colonizador brasileiro. "O Quatrilho" não quer lidar com a questão da colonização, deu um jeito de ficar pairando sobre ela. Quer transformar a colonização em uma história de amor. Mas é uma história de amor que, infringindo a moralidade vigente, acontece nos trópicos.
Para Contardo, nosso país não soube ser pai, não soube organizar um quadro social que outorgasse cidadania. Haja Tio Sam para suprir essa falta. Um papai chamado Oscar... Pobres brasileiros, carregaríamos aí um fracasso na constituição de uma identidade...
Uma outra abordagem ajuda-nos aqui. O brilhante livro de Octávio Souza, "Fantasia de Brasil!" (Ed. Escuta), mostra como foi a utopia européia de um paraíso terrestre que presidiu "nosso ato de batismo", o que leva a uma procura de fruição imediata, uma busca de gozo imediato. Afirma que "foi particularmente aqui no Brasil que o fator erótico alcançou predomínio maior".
Em "O Quatrilho" vence o encontro erótico, a instituição "família" é questionada pelo encontro sexual. O que Octávio Sousa propõe é "adotar a visão do paraíso do descobridor europeu para nos olharmos a nós mesmos". Em "O Quatrilho" faltou esse "olharmo-nos a nós mesmos". E faltou este olhar sobre nós mesmos na certeza da conquista do Oscar.
Nosso Kikito, prêmio do principal festival brasileiro que é Gramado, é uma figura com o sol na cabeça. É como se assumíssemos que só podemos triunfar no cinema enquanto depositários do sol dos trópicos.
Tanto na leitura que Contardo Calligaris faz, quanto na de Octávio Souza aparece um destino inexorável, uma impossibilidade de sair do lugar do gozo. Tem havido uma retomada da questão da antropofagia de Oswald de Andrade pelos psicanalistas que procuram encontrar instrumentos para pensar o Brasil. O "Manifesto Antropofágico" se dá como prova de uma busca de uma "introjeção sem qualquer consequência simbólica" (Charles Melmain). "O Manifesto Antropofágico" passa a ser lido literalmente sem qualquer poesia. Parece que aqui o problema com a simbolização está mais do lado dos analistas e "O Quatrilho" trata-se de uma boa diversão, goza-se com a possibilidade de alimentos altamente refinados e digeríveis. Autobanquete que ingere até o pai totêmico: de repente, poderíamos ter comido papai Oscar. O gozo une-se à prosperidade.
Citando o diretor Hal Hartley: "A lei é um contrato. Um contrato entre os ricos que têm tudo e os pobres que querem tomar tudo deles. E o contrato diz que se conseguir infringir a lei, ótimo. Mas se for apanhado tem que pagar o preço. Não é nada moral."
Trata-se de acabar com a ilusão de que qualquer estereótipo possa ocupar o lugar de papai dando identidade. Em vez de querer agradecer o papai e a mamãe, como fazem aqueles que sobem nos palcos da academia do Oscar, devemos valorizar nosso gingado. Não precisamos virar chato-boys. O Brasil é muito mais que tudo isso.

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