São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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O laboratório social de assassinatos

JURANDIR FREIRE COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Crianças de 12 anos tiveram suas cabeças estouradas a tiros de escopetas por bandidos ligados ao tráfico; um procurado traficante "enforcou-se" na cela em que estava preso; jovens do subúrbio mataram-se em brigas por prestígio e domínio de território, eis o balanço dos primeiros dias de março no Rio de Janeiro.
No Brasil mata-se, mata-se e mata-se. Mata-se tanto e de tal forma que estamos nos tornando um verdadeiro laboratório social de assassinatos. Falamos em banalidade da morte; anestesia moral; trivialização da violência pela mídia etc. Tudo isto é verdade. Mas acho que existe algo mais. Recentemente, Robert Kurtz, de maneira lúcida e dura denunciava o torpor do capitalismo. Hannah Arendt, Agnes Heller e Ferenc Féher seguramente somariam ao cenário a sonolência depressiva da república e da democracia.
Estamos repetindo o que de pior ocorreu no Ocidente. Não apenas produzimos os sem-teto e sem-pão; estamos multiplicando os "societyless". Já não sabemos mais o que é aprovado e reprovado. Ou, se sabemos, fingimos não saber. Há muito abolimos do discurso e da prática política referências à justiça e à igualdade. Mas guardávamos princípios como emprego para todos, moral do trabalho e direito inalienável à vida. Tais princípios eram o lado "clean" da face pedestre do lucro e do dinheiro.
A democracia, a industrialização, o progresso e a elevação do nível de vida justificavam o capitalismo. O corpo político fornecia aos indivíduos uma imagem de si fundada na identidade da ascensão social e assim mantinha-se minimamente coeso e organizado. A idéia de "contingência", típica da modernidade leiga, era compensada pela proteção dada à integridade físico-moral do sujeito e pela premiação ao seu empenho em progredir socialmente, pelo esforço e pela produtividade.
Em outras palavras, como dizem Heller e Féher, a abertura incerta e plural para as múltiplas possibilidades de mudança eram amarradas por finalidades maiores como dignidade da vida, do trabalho, do bem-estar material e da auto-realização pessoal. Isto permitia ao sujeito fazer da figura imaginária da "contingência" pré-condição de um destino desenhado por ele próprio. Numa cultura individualista, voltada para o apelo constante à singularização do eu, a crença da autonomia do sujeito é fundamental. Conceber-se como senhor da vontade é o que estrutura o amor narcísico de si e o respeito aos iguais. A noção de indivíduo, como mostra Ruwen Ogien, é normativa. Não descreve apenas um estado de coisas dos organismos humanos; prescreve condutas; hierarquiza aspirações, em suma, exprime preferências morais.
Ora, tudo isto vacila quando os pilares da ordem econômico-social vêm abaixo. No momento em que o emprego não existe; em que a moral do trabalho é desafiada pela "nova e intocável casta financeiro-especulativa", o que somos e para que vivemos é posto em questão. Não saber para que se existe ou imaginar-se como um produto de contingências imutáveis são experiências emocionais incompatíveis com a forma de vida do individualismo democrático.
A imagem de um mundo sem fins ou com fins pré-fixados são um convite à desconfiança no poder de criação do indivíduo, ideário que nos constitui enquanto sujeitos morais. Perdida esta confiança, pouco resta, exceto a sujeição ou a busca cega de afirmação a qualquer preço.
Penso que, no Brasil, vivemos este impasse. As regras de convívio que nos são propostas são as de párias ou bandidos. O núcleo do imaginário social passou a girar em torno da idéia de que nada podemos fazer para que algo mude ou, então, da idéia de que iniciativas pessoais não podem ser objeto de regulamentação por meio de valores comuns.
Em filosofia política, discutiu-se muito sobre a base do contrato social: o medo mútuo da morte; a convergência de interesses pessoais; a piedade ou compaixão pelo sofrimento alheio; a livre obediência às leis aceitas por todos etc. Mas pouco se pensou que as pessoas também podem manter-se unidas pelo sentimento de impotência; pela pusilanimidade e pela cumplicidade sádica, masoquista ou voyeurista diante do espetáculo da decadência. Quando Contardo Calligaris, numa "boutade", dizia que o "slogan" político "sem medo de ser feliz" podia "dar medo", tinha em mente esta possibilidade.
A destruição, às vezes pode tornar-se o único objetivo capaz de empolgar povos ou indivíduos. O gozo com a morte, o sofrimento e a degradação de si ou do outro é uma das características da espécie a que pertencemos. Espero que as razões da teoria não se tornem razões de viver, neste triste país, tão "dessemelhante".

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