São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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No início era Shakespeare

ROBERT DARNTON
ESPECIAL PARA "NY REVIEW OF BOOKS"

"Shakespeare criou o mundo em sete dias.
No primeiro dia ele fez o céu e as montanhas e as ravinas da alma.
No segundo dia ele fez os rios, os mares, os oceanos, bem como todos os outros sentimentos, que deu a Hamlet, Júlio César, Cleópatra, Ofélia e demais, para que reinassem sobre eles, com seus filhos e toda sua descendência, para todo o sempre.
No terceiro dia..." Marin Sorescu

Este hino a um poeta morto, branco e do sexo masculino foi escrito pelo ministro da Cultura (de 93 a 95) da Romênia. O poema revela algo sobre o período pós-comunista na Europa Oriental e, por implicação, sobre nós mesmos. Algo assim não poderia ser escrito nos Estados Unidos de hoje: a mudança geral de clima rumo ao pós-modernismo traz consigo perturbações secundárias, como as jeremiadas que têm caído sobre as humanidades.
O declínio da capacidade de leitura, o fim do romance, a morte da literatura, o retraimento dos intelectuais, a extinção do livro, o colapso da Galáxia de Gutenberg -qual apocalipse ainda falta anunciar? Nossos críticos culturais desesperam-se ao contemplar a paisagem devastada: textos desconstruídos, cânones desmembrados, currículos demolidos e, dançando sobre as ruínas, as mais loucas variedades de "estudos culturais". Se é que há alguma saída, dizem eles, teremos que voltar ao primeiro passo, começar do começo, pôr em dia nosso Shakespeare.
Quando se trata de literatura inglesa, todos os caminhos levam a Shakespeare -em parte graças ao mapa original traçado por Samuel Johnson (nas suas "Vidas dos Poetas"). Na França, graças a um trabalho semelhante, desenvolvido por Voltaire no seu "Siècle de Louis XIV", todos os caminhos levam a Molière. Mas agora, mais de dois séculos mais tarde, é difícil achar padrões seguros na história da literatura, que já não nos parece uma mera sucessão de grandes obras escritas por grandes homens ("l'homme et l'oeuvre", na velha fórmula francesa para impor ordem ao assunto). A literatura já não é sequer um corpus de textos, mas uma atividade, um modo pelo qual leitores extraem sentido de símbolos impressos sobre páginas, ou seja: um modo de leitura.
Essa abordagem da literatura, em geral conhecida por "teoria da recepção", tornou-se uma trivialidade entre críticos literários. Mas ela ainda tem que mostrar a que veio, porque, se não sabemos o que é a leitura que se dá bem embaixo dos nossos narizes, que dirá da leitura nos tempos de Shakespeare, Molière, Johnson e Voltaire. Enquanto isso, uma outra teoria, o desconstrucionismo, tem feito os textos parecerem tão complexos e contraditórios que parece não haver esperança de que algum leitor algum dia consiga extrair sentido deles.
O estudo do sentido, entretanto, está no coração das ciências humanas contemporâneas. Antropólogos, sociólogos, historiadores, filósofos, críticos literários e afins -todos partem da premissa de que os seres humanos são animais produtores de sentido. Argumentam que os sentidos são produções coletivas, que os padrões comuns de sentido são parte de um processo maior, que envolve grandes ignaros e grandes filósofos na busca de sentidos para o mundo.
Não que a construção social da realidade produza visões de mundo coerentes e claras. Ela envolve conflito e negociação infindáveis, uma atividade incessante de traçar limites, contestar fronteiras e reacomodar nossas experiências em categorias instáveis -em suma, uma luta para estabelecer sentidos sociais abrangentes, comparável ao esforço dos leitores à volta com a interpretação de livros.
Todos sabemos que "viver" um livro não é o mesmo que viver a vida. Os próprios livros -"Don Quixote", "Madame Bovary", "Miss Lonely Hearts"- advertem-nos sobre esse tipo de confusão. Mas o paralelo pode ser instrutivo; sua versão mais persuasiva foi desenvolvida por Michel de Certeau, que entendia a leitura como apropriação de textos ou, como preferia dizer, pilhagem de textos.
Ele dizia que as pessoas comuns, especialmente as que se encontram mais embaixo na escala social, não são vítimas passivas e indefesas dos meios de comunicação. Usam os tablóides e as telenovelas como melhor lhes convém e nos seus próprios termos, não nos termos dos produtores. Richard Hoggart fez interpretação semelhante da cultura operária na Grã-Bretanha dos anos 50, e Janice Radway mostrou a relevância dessas idéias para a compreensão das leituras femininas na América de hoje.
Apesar das dificuldades, uma história da leitura poderia servir de acesso ao problema mais geral de como as pessoas interpretam os sistemas simbólicos postos à sua disposição pela cultura. Mas como ultrapassar as dificuldades?
Uma vez que tão poucos leitores deixam traços de seus modos de leitura, os historiadores da leitura têm sido obrigados a arrancar hipóteses ao que quer que pareça sólido o bastante para passar por dado objetivo. Estudando testemunhos iconográficos, Erich Schõn sugeriu que a relação física entre leitores e livros passou por uma mudança significativa há mais ou menos 200 anos atrás. Antes do século 19, as imagens costumam mostrar leitores com livros em suas mãos ou sobre suas pernas, mesmo quando sentados à mesa. Depois de 1800, a mesa torna-se o principal suporte para a leitura: os leitores debruçam-se sobre a mesa, sua relação física com o texto reduzida aos movimentos dos olhos e o ocasional roçar de um dedo.
Pode-se debater se essa mudança significou, como quer Schõn, uma "perda de sensualidade" (suspeito que a transição do papel de trapo ao papel de polpa de celulose representou um importante ganho de sensibilidade no trato com os livros); ainda assim, o elemento corpóreo da leitura certamente teve alguma relação com o cerebral.
A passagem do rolo ao códice, no século 2 d.C., desobrigou as pessoas de terem que desenrolar seus livros; agora, podiam passear pelo livro, folheá-lo de trás para a frente. O advento da imprensa pôs essa experiência ao alcance de setores crescentes da população. Mas, nos últimos anos, o computador vem ameaçando tornar a página impressa uma unidade obsoleta para a literatura. Leitores de telas de computadores contemplam um fluxo ininterrupto de texto, desenrolando seus textos um pouco à maneira de seus predecessores no Império Romano, a não ser pelo fato de o fazerem por meio de botões.
A tentativa que mais êxito alcançou veio da disciplina da bibliografia analítica. Roger Stoddard advertiu os críticos literários quanto ao fato de que escritores não produzem livros: produzem textos, ulteriormente transformados em livros por obra de gráficos e demais intermediários, que determinam a forma que assumirá a literatura nas mãos de seus leitores. A reação dos leitores é moldada pela tipografia, design das páginas, capa, ilustrações e demais peculiaridades do livro enquanto objeto físico.
John Locke enfatizou esse mesmo ponto três séculos atrás, quando observou que a Bíblia seria lida muito diferentemente se fosse impressa como narrativa contínua, ao invés de ser seccionada em fragmentos citáveis por número de capítulo e versículo. Apoiando-se em Locke e em numerosos exemplos da literatura inglesa, Donald F. McKenzie, o maior bibliógrafo vivo, sugeriu que sua disciplina deveria expandir-se, a fim de transformar-se numa "sociologia de textos", isto é, num estudo da literatura relacionando textos ao conjunto de seu ambiente social, englobando gráficas, livrarias, as várias formas da mídia e das mentalidades em uma dada sociedade.
Não é pedir pouco! Os trabalhos de McKenzie sobre a Cambridge University Press e sobre as edições de Congreve sugerem que a bibliografia é de fato capaz de traçar as operações dos "impressores da mente" (como escreve o autor), mas não de historiar integralmente as reações dos leitores. O esforço mais ambicioso nessa direção veio de um historiador da cultura, o francês Roger Chartier, cujo último livro, "Formas e Sentidos: Textos, Atuações e Públicos, do Códice ao Computador", ilustra bem os problemas que esse tipo de pesquisa histórica deve enfrentar.
À maneira de McKenzie, Chartier tira sua inspiração da sociologia, em especial da obra de Pierre Bourdieu; e, tal como alguns oponentes do pós-modernismo, ele toma uma posição muito forte contra a assim chamada "virada linguística", isto é, a tendência a interpretar o sentido, o comportamento e a realidade como produtos do discurso.
Por "discurso", Chartier entende um sistema fechado de signos (por exemplo, um corpus de textos) dentro do qual o sentido dos enunciados mede-se por sua conexão com outros enunciados, e não com a intenção autoral ou a realidade exterior à linguagem. A voga atual da análise do discurso, a seu ver, é profundamente mal orientada, pois trata práticas não-discursivas (o comportamento cotidiano, por exemplo) do mesmo modo que as mensagens impressas nos livros. A análise do discurso confunde experiências com textos e assim ameaça pôr a crítica literária no lugar da teoria social.

Continua à pág. 5-5

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