São Paulo, domingo, 31 de março de 1996
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As diversas encenações de uma mesma peça são como leituras de um mesmo livro

Continuação da pág. 5-6

ROBERT DARNTON

Shakespeare era um artista a serviço da corte e não um gênio prometeico
Para Chartier, a leitura é justamente a espécie de atividade cultural que mais precisa ser resgatada à crítica literária. Ele a descreve como uma "apropriação", termo-chave que emprestou a De Certeau, tingindo-o com o conceito de "distinção" (Bourdieu), de modo a indicar um modo de comportamento por meio do qual um grupo social se afirma face a outros. Assim, quando se apropriam de textos, os leitores não estão apenas pilhando uma floresta de símbolos para seus fins ou caprichos individuais. Eles extraem sentidos de textos de modo específico à "comunidade interpretativa" (Stanley Fish) em que se encontram.
Tudo isso soa bastante abstrato e pode bem irritar quem não tiver interesse nas nuances que separam um teórico de outro. Mas Chartier mostra o que está em jogo nessas distinções e aglutinações conceituais, quando as aplica a estudos de caso. Como em seus trabalhos anteriores, ele enfatiza a importância de se estudar os livretos populares, conhecidos como "bibliothèque bleue" e vendidos por ambulantes em toda a França, do século 17 à metade do 19. Não se deve tomá-los por exemplos de cultura popular, pois nada seria mais enganador que considerar esses "paperbacks" primitivos, cheios de histórias fantásticas, como janela para uma outra visão de mundo. São textos, não expressões transparentes de uma mentalidade supostamente popular, e a questão crucial não diz respeito a seus temas, mas aos modos como eram lidos.
Para responder a essa pergunta, Chartier usa as técnicas aperfeiçoadas por McKenzie e outros bibliógrafos, a fim de mostrar como as qualidades físicas dos livros influenciavam as leituras possíveis. Ele observa que certas obras foram publicadas originalmente em edições de luxo destinadas à clientela nobre. Os editores não tardavam a relançá-las como livretos baratos.
As obras eram resumidas, impressas em papel barato com tipos desgastados, costuradas a capas feitas do grosseiro papel azul que servia para embalar cones de açúcar (daí o nome de "bibliothèque bleue") e vendidas a vintém para um público semi-alfabetizado. Quando lidas ou ouvidas por um público de artesãos ou camponeses, não podiam conter enredos complexos. Ofereciam ao público fragmentos de ação, que podiam servir à diversão ou à reflexão de pessoas que as seguiam episódio por episódio, ouvindo-as enquanto tricotavam meias ou consertavam ferramentas -bem à maneira das nossas empregadas domésticas e suas novelas de TV.
Mas como, precisamente, elas prestavam atenção? Ninguém sabe, pois não há documentação conveniente para corroborar as hipóteses que Chartier formula a partir das qualidades físicas dos livros. Por rigorosa que seja a teoria, as provas materiais desse tipo de historiografia teimam em não aparecer. Chartier às vezes parece estar encurralando a si mesmo, pois a história da leitura, tal como ele a concebe, parece tão convincente em teoria quanto impossível na prática. Mas ele encontra uma saída: retorna a Molière.
As peças de Molière, como as de Shakespeare, prestam-se às interpretações mais loucamente divergentes, mas a história de suas montagens pode ser determinada com alguma precisão, e essa história guarda consequências importantes para os problemas formulados pelos estudos de recepção. Apesar das diferenças óbvias, as diversas montagens de um mesmo script assemelham-se num ponto às várias leituras de um mesmo livro: dão vida a textos por meio de uma interpretação e acrescentam outra dimensão à construção do sentido: nelas, o público pode interpretar a interpretação dos atores.
As encenações ("la mise en scène") podem ser estudadas à maneira das qualidades materiais dos livros ("la mise en libre"). É claro que a documentação a respeito deve ser manejada com muito cuidado e suplementada por outros tipos de documentação; mas, se bem feito, esse tipo de estudo pode ser muito convincente.
Chartier consegue esse feito na parte mais importante do livro, um longo ensaio sobre o "Georges Dandin" de Molière, peça que estreou nos jardins de Versalhes, frente à corte de Luís 14, em 18 de julho de 1668, e foi encenada quatro meses mais tarde para o público parisiense, no teatro de Molière no Palais Royal. Valendo-se de uma ampla variedade de documentos, Chartier faz um relato maravilhosamente rico dos significados que uma montagem poderia ter para dois públicos tão distintos.
A peça trata das humilhações por que passa um camponês rico ao tentar melhorar seu status social, casando-se com a filha de um nobre. Ao longo dos séculos, a peça tem sido encenada de todas as maneiras possíveis, de farsa inocente a protesto sedicioso contra as diferenças estamentais. Para os cortesãos de Luís 14, diz Chartier, ela oferecia não só diversão, mas ainda uma lição sociológica sobre a natureza do absolutismo. A estréia teve lugar no auge do poder de Luís 14, pouco após uma guerra vitoriosa no Franche-Comté, e não foi mais que parte de uma extravagante série de festividades -banquetes, danças, concertos, bailes- para celebrar a glória do monarca.
Relatos contemporâneos insistem mais sobre o cenário magnífico que sobre o engenho verbal de Molière. Madame de Sévigné, que também compareceu à estréia, sequer a menciona em sua famosa correspondência, preferindo discutir a questão que dominava as fofocas cortesãs: a tentativa que faziam várias famílias de demonstrar sua nobreza provando a antiguidade de seus títulos, tal como o exigia uma declaração real de 1661.
Mas era justamente esse o problema que, segundo Chartier, a peça dramatizava aos olhos dos cortesãos. Ninguém levava a sério os desejos nobiliárquicos de um camponês: por ricos que fossem, camponeses não se casavam com nobres no século 17. Mas o casamento absurdo de Georges Dandin servia de comentário ao processo geral de estabelecimento das identidades sociais. Em princípio, só era possível ascender do Terceiro ao Segundo Estado por meio de certos procedimentos reconhecidos (a aquisição de um cargo, por exemplo), mas, na prática, o que importava era o reconhecimento de gente como Madame de Sévigné. A tentativa de Dandin de transformar riqueza em status ensina-lhe que a sociedade não é regulada apenas por um código abstrato, mas também pelos árbitros desse código. As coisas não são o que parecem ser, e as regras do jogo dependem daqueles que as fazem valer.
O árbitro maior era o rei. Ao exigir que "seus" nobres provassem sua legitimidade por meio de toda espécie de procedimentos burocráticos, Luís 14 fazia-se mestre do jogo de conquista de posições na hierarquia social. E assim Georges Dandin, um dos maiores perdedores da literatura, trazia algo mais que diversão à sua platéia aristocrática: dava-lhes uma aula de sociologia, aliás muito parecida às de Pierre Bourdieu.
Em Paris, a peça assumia sentido diferente, muito mais próximo de "O Burguês Fidalgo": punha a nu para uma platéia de gente comum os perigos que correriam os que tentassem "subir na vida". Ao invés de analisar as distinções sociais como processos de negociação e arbitragem, limitava-se a reforçar o status quo. A interpretação de Chartier soa convincente, mas ele a defende, em momentos cruciais, com expressões como "deve ter sido" ou "pode ter sido", ao invés de apresentar provas sólidas. Não seria difícil enviesar essas "possibilidades" noutra direção: outros estudiosos sugerem que, sendo as platéias parisienses fortemente aristocráticas, devem ter entendido a peça em termos basicamente idênticos aos de Versalhes.
Parece pouco generoso levantar essa espécie de questões depois de ter seguido Chartier em seu primoroso tratamento da montagem cortesã da peça. Mas não se trata de ingratidão: apenas gostaríamos que ele repetisse a dose em torno à encenação parisiense. Se no futuro for capaz de preencher a segunda metade da fórmula tradicional "la cour et la ville", ele terá em muito avançado rumo a seu ideal de história das apropriações culturais.
Nesse ínterim, os historiadores da literatura do outro lado do Canal e do Atlântico têm avançado numa outra frente do mesmo conjunto de questões. Foram além dos franceses na reconstrução de sua tradição literária: voltaram a Shakespeare (1564-1616). O assim chamado "neo-historicismo" desenvolveu-se nos estudos shakespearianos como tentativa de fugir ao curto-circuito teórico em que a crítica literária parecia enclausurada. Os neo-historicistas não rejeitam o pensamento pós-modernista; seus trabalhos estão eivados de citações de Michel Foucault. Mas eles tentaram ligar-se à história social, aplicando suas preocupações teóricas a problemas concretos, sobretudo ao problema de encontrar afinidades entre as atuações dos atores shakespearianos e as preocupações dos ingleses que assistiam a eles.
Essa tendência de pesquisa, que tem proliferado nas duas últimas décadas, conseguiu de fato alterar nossa compreensão do panorama literário de 400 anos atrás. Stephen Greenblatt mostrou como "A Tempestade" exprimia a primeira onda de imperialismo inglês no Novo Mundo. Richard Helgerson exibiu a ligação entre o patriotismo de "Henrique 5º" e as tentativas de, por meio de novos mapas e códigos legais, transformar o reino de Elizabeth 1ª numa nação-Estado.
Uma das melhores monografias, "The Place of the Stage. License, Play and Power in Renaissance England" (O Lugar do Palco. Licença, Peça e Poder na Inglaterra Renascentista), de Stephen Mullaney, oferece justamente o tipo de análise minuciosa do teatro urbano que falta ao livro de Chartier.
É claro que a Londres de Shakespeare era diferente da Paris de Molière, especialmente em suas áreas marginais, isto é, nas Liberties, as áreas francas no lado Sul e fora dos muros da cidade, onde a jurisdição das autoridades municipais era quase nula. Foi aqui que, em 1576, James Burbage construiu um edifício a que deu o nome de Theatre, um novo tipo de estrutura, destinada à apresentação pública de peças. Por volta de 1600, Londres estava cercada de teatros parecidos ao Globe de Shakespeare, edifícios imponentes que se erguiam acima de uma paisagem de tavernas, casas de tolerância, locais de jogo, ringues de galos, arenas de touradas, lazaretos, mercados de pulgas, prisões (The Clink), hospitais parecidos a prisões (The Lock) e cemitérios para mortos não-identificados (No Man's Land).
O patíbulo estava bem perto, recordando a semelhança entre o tablado do carrasco e o tablado do ator. Era um território liminar, repleto de coisas maravilhosas a serem admiradas e dominadas -entre as quais a língua inglesa, como Shakespeare mostrou nas duas partes de "Henrique 4º". Mullaney leva seu leitor a um passeio por esse território e pelos textos de Shakespeare. É um "tour de force", que mostra como essa nova instituição, o teatro público, expressava as tensões sociais e políticas da sociedade Tudor-Stuart, tais quais se desenrolavam numa perigosa zona fronteiriça.
Uma vez mapeado esse cenário urbano, cabe ao historiador da literatura descrever um outro território, onde peças e poderes convergiam, só que desta feita do outro lado (Oeste) de Londres, na corte de James 1º, em Whitehall. Alvin Kernan desincumbiu-se dessa tarefa com habilidade ímpar em seu "Shakespeare, Dramaturgo do Rei. Teatro na Corte Stuart, 1603-1613", um livro simultâneo ao de Chartier e de argumento semelhante. Talvez não seja o caso de classificar o autor como neo-historicista, uma vez que Kernan pertence a uma geração anterior. Aliás, foi ele o orientador de Greenblatt, estrela do novo movimento. Além disso, em seus últimos livros ele parece ter-se juntado ao coro de jeremiadas sobre o estado da cultura literária, narrando a ascensão e a queda da cultura da palavra impressa (respectivamente em "Printing Technology, Letters, and Samuel Johnson", 1987, e em "The Death of Literature", 1990).
"Literatura", por oposição às "letras" (termo que reserva ao período anterior a meados do século 18), significa para Kernan um modo de conhecimento do mundo mediado pela experiência da leitura e pelas instituições que a tornaram possível: alfabetização generalizada, um florescente comércio de livros e o culto romântico ao autor.
A televisão, os computadores e as outras formas de tecnologia moderna teriam destruído os fundamentos da cultura da palavra impressa. Kernan então anuncia a morte da literatura, não num grande lamento, mas numa engenhosa série de monografias que traçam a vida efêmera das verdades que pareciam eternas a ele e aos outros calouros-recrutas que, ao final da Segunda Guerra, beneficiados pela G.I. Bill (lei que garantia vagas universitárias aos soldados americanos), largaram seus fuzis para empunhar seu Shakespeare.
"Shakespeare, Dramaturgo do Rei" remata essa série, mostrando onde teve início a literatura: nas cortes dos príncipes renascentistas. A autonomia, entretanto, só veio na época de Samuel Johnson, o Grande Cã da Literatura, quando o comércio de livros suplantou o mecenato principesco como ganha-pão dos autores. Na qualidade de dramaturgo principal da trupe The King's Men, Shakespeare era obrigado a fazer as honras de seu patrono real, James 1º; e também tinha que agradar à massa que, indo ao Globe, respondia por 85,90% das rendas da companhia. Mas as montagens nas Liberties não podiam ofender o rei, e não só pelo medo de perder a permissão de funcionamento: segundo Kernan, elas serviam também de ensaio geral para o clímax da temporada teatral: o ciclo de festividades natalinas na corte, que iam do dia de Santo Estevão (26 de dezembro) à Epifania, ou Noite de Reis (6 de janeiro), e por vezes mesmo até a Quaresma, logo após o Carnaval.
Sendo assim, temos que entender Shakespeare como artista a serviço da corte Stuart, e não como o gênio prometeico imaginado por historiadores de pendor romântico. O romantismo é a "bête noire" que Kernan persegue pelo livro inteiro; trata-se, para ele, do produto anacrônico de uma concepção datada de literatura, e Kernan o vê por toda parte, até mesmo em montagens modernistas em que Coriolano é um fascista ou em interpretações neo-historicistas que vêem em Caliban uma vítima do imperialismo. Insiste Kernan: as peças de Shakespeare não têm qualquer mensagem revolucionária; seu sentido é circunscrito pela experiência de vida dos cortesãos que as viam no começo do século 17.
Como no caso de Molière, a documentação é suficientemente farta para que os historiadores possam recapturar algo desse sentido. A trupe real subiu 138 vezes ao palco real entre a ascensão de James 1º em 1603 e a "aposentadoria" de Shakespeare em 1613. Muito provavelmente montaram todo o repertório de seu dramaturgo-mor: 17 das peças de Shakespeare são mencionadas explicitamente nos registros do Tesouro e em outros arquivos. Como membros da criadagem real, os atores também desfilavam atrás do rei, vestindo sua libré, nas procissões importantes. Certamente não ficavam com a parte do leão na corte, e suas produções atraíam bem menos atenção que mascaradas, banquetes e bebedeiras. Mas tinham seu lugar estabelecido na corte por sua função de encenar a pessoa real: produziam peças dentro da peça maior que era o jogo pelo poder.
A noção de poder como encenação ou atuação teatral não era apenas uma imagem literária nos séculos 17 e 18. Os ingleses tomavam-na ao pé da letra: "Nós, príncipes, encontramo-nos sobre um palco à vista de todo o mundo", disse Elizabeth; "o rei está sobre um palco, onde suas menores ações e gestos são miradas atentamente por todos", disse James.
Quando The King's Men subiam ao palco na corte, a platéia comparecia para assistir ao rei assistindo à peça. Kernan prova isto reconstruindo a disposição física dos espectadores nas salas de Hampton Court, Whitehall e Christ Church College (Oxford). O rei sentava-se numa plataforma elevada conhecida como o "Estado". Atrás dele e a seu lado, os cortesão acomodavam-se em fileiras de modo a terem a melhor visão possível do monarca, não do palco; como observa Kernan, era o rei, e não a peça, que lhes interessava.
Quando Hamlet foi encenado em Hampton Court em 26 de dezembro de 1603, a peça-dentro-da-peça ("A Morte de Gonzago") era uma imagem especular da platéia à sua frente. James e a rainha Anne, sentados sobre o "Estado", correspondiam perfeitamente a Cláudio e Gertrude no palco. E os cortesãos de James assistiam a ele assistindo a Hamlet assistindo a Cláudio, com a atenção que os jogos de poder, de vida e morte numa corte renascentista exigiam. "Deve ter sido um dos grandes momentos do teatro ocidental (...) capaz de levar todo espectador inteligente, então como agora, a se perguntar qual dos mundos afinal era um palco e qual era o real", observa Kernan.

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